Historicamente na vanguarda de importantes iniciativas literárias, o Ceará continua a ser berço de ações cujo foco é o incentivo à leitura. Um levantamento nacional atesta esse longevo protagonismo. Realizado pelo Itaú Cultural e a Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio), com consultoria da JC Castilho, a pesquisa “O Brasil que Lê” congrega sete iniciativas cearenses inscritas na plataforma do mapeamento.
Diversas, elas estão espalhadas pela Capital e o interior, com atuação pela internet, de forma presencial ou mista. Em Fortaleza, inscreveram-se no levantamento os projetos “Ler para Crer: metodologias para implantação de bibliotecas comunitárias”, de Lidia Lima; “Entrelinhas”, de Dauana Vale; “Caravana de Leitura e do Autor Cearense”, de Raimundo Moreira da Costa; e “Odisseias Literárias”, de Italo Teixeira Chaves.
Por sua vez, as iniciativas do interior do Estado são a Biblioteca Comunitária Laura Barros de Lima, de Itaitinga, sob responsabilidade de Paula Francinete Pereira; o Clube de Leitura Literaturar, de Redenção, tocado por Joanna Cavalcante; e o projeto “Conte de lá que eu conto de cá”, de Banabuiú, realizado por Marília Batista Sá. Os interessados podem inscrever ações dessa natureza neste link, incorporando mais fazeres e grupos numa seara a favor da leitura e do conhecimento.
Em entrevista ao Verso, a escritora e psicóloga Dauana Vale, do “Entrelinhas”, explica que a ação idealizada por ela nasceu do desejo de conversar com as mais diversas pessoas sobre os benefícios de ler em família. “Encontrei no audiovisual uma boa ferramenta para isso e, então, produzi o documentário ‘Para cada pessoa um livro’, exibido pela primeira vez em 2018”, diz.
Disponível no YouTube, o trabalho apresenta, de modo sensível e abrangente, o cotidiano de quatro famílias e suas experiências de leitura compartilhada. Não à toa, o nome “entrelinhas” atribuído ao projeto à frente da empreitada. Segundo Dauana, o tesouro muitas vezes está onde os olhos não alcançam.
“Ler junto pode ser um rico momento para trocas afetivas. O projeto, assim, propõe a exibição e discussão do documentário em grupos. Essa ação é possível de ser realizada em clubes de leitura, reuniões de mães e pais em escolas, encontros familiares etc.”, enumera.
“Utilizo as redes sociais (Instagram e WhatsApp) para demonstrar como essa leitura compartilhada pode ser realizada. Amigos e seguidores enviam fotos e vídeos desses momentos, às vezes eu penso em um roteiro e produzo pequenos vídeos em casa com minha filha”, completa. “Busco também ilustrar a pluralidade literária em nosso país, que há muitas possibilidades de leitura, editoras”.
Pluralidade de ações
De acordo com dados da pesquisa “O Brasil que Lê”, baseado nos registros aplicados até o momento, 52% das iniciativas inscritas na plataforma são custeadas com recursos próprios – do responsável pela ação ou da comunidade onde está inserida. O projeto “Entrelinhas” não foge dessa estatística. Desde o documentário e a compra de livros até postagens nas redes sociais, tudo conta com um investimento particular.
Iniciada de forma mista, há um ano a empreitada restringiu-se somente ao digital. Foi a partir da pandemia de Covid-19 e a necessidade de estar em casa que Dauana Vale disponibilizou o documentário gratuitamente. “As famílias poderiam ser convidadas à leitura compartilhada por meio do vídeo”, pontua, contando ainda que, com o projeto, passou a olhar com mais cuidado para as pessoas que não possuem o hábito de ler.
“Ouvir o que dizem com atenção, sugeri-las narrativas que dialoguem com seus estilos de vida. Às vezes o ‘você tem que ler’ tal livro afasta um tanto de gente da literatura. Nunca mais utilizei essa expressão, até mesmo porque a leitura é uma experiência particular, um livro que encanta um leitor não necessariamente fará o mesmo com outro. E tudo bem!”, sublinha.
“Por meio das histórias, dos poemas, nos aproximamos das questões humanas, principalmente aquelas que nos envergonham, emocionam ou causam raiva. Isso nos possibilita ampliar o olhar diante da complexidade da existência, o que provavelmente nos encaminha para a tolerância, a compaixão, o diálogo”, complementa.
Isso tudo depreende uma gama de desafios. Especificamente sobre a relação entre pais e filhos nesse instante de leitura conjunta, há que se reservar um tempo, desligar o celular e realizar a atividade junto aos pequenos, possibilitando a comunhão de afetos.
“É momento de olhar nos olhos. No entanto, para muitas mães e muitos pais essa tarefa não é nada fácil por uma série de questões, entre as quais estão a inabilidade com crianças ou até mesmo o preconceito com o ato de brincar – o fantasiar, que, culturalmente, não é permitido aos adultos”, tensiona Dauana em um artigo publicado no Blog do Clube Quindim.
Por essa e outras tantas razões, inscrever o projeto no mapeamento “O Brasil que Lê” impôs-se como necessidade. “É uma maneira de registar o que tenho feito. Documentar as ações é relevante para o estreitamento do diálogo com possíveis parceiros, o que de certa forma legitima e intensifica as atividades”, avalia.
E completa, adiantando os próximos passos da iniciativa: “Com o avanço dos meus estudos sobre leitura compartilhada, tenho ampliado o Entrelinhas para além da leitura em família. Percebi, por exemplo, que há uma força gigante do ato de ler em grupos de jovens e de mulheres. E que há muitos espaços ociosos de fala, palavra, existência. Então, tenho buscado recursos para chegar a novos grupos e a outras propostas de atividades”.
Livros para todas e todos
No interior do Ceará, a Biblioteca Comunitária Laura Barros de Lima, de Itaitinga, também integra o levantamento “O Brasil que Lê”. Inaugurado em novembro de 2009, o espaço surgiu por meio da iniciativa de uma moradora da região, com o auxílio do Projeto Ler para Crer, da Universidade Federal do Ceará (UFC), que capacitou pessoas para a criação da casa.
“Nós vivenciamos na biblioteca literatura brasileira, estrangeira e cearense também, a partir de obras locais. O acervo possui 3 mil livros, englobando títulos infantis e infanto-juvenis, didáticos e paradidáticos. Temos um autor aqui no município que abraça a causa, o Ozéias Targino”, sublinha Paula Francinete, professora e uma das responsáveis pela biblioteca.
Ainda que mantendo uma página no facebook, o equipamento realiza todas as atividades de modo presencial. A emergência da pandemia, contudo, tem otimizado novos olhares sobre o espaço digital. “Tínhamos aula de violão, contação de história, teatro e roda de leitura. Os próximos passos serão fazermos algo diferente no on-line porque o trabalho não pode parar. Não tínhamos internet, então agora é que vamos retornar, com ações virtuais para a comunidade”, detalha Paula.
De acordo com ela, o interesse em fomentar a leitura no município sintoniza-se com a vontade de levar conhecimentos para as crianças, adolescentes, jovens e adultos do bairro onde a biblioteca está sediada. Um dos desafios que elenca nesse caminhar é cultivar o interesse da comunidade pela leitura, apresentando a importância de se ter um mundo literário próximo.
“Por outro lado, o benefício da ação é saber que estamos contribuindo para o desenvolvimento cultural do nosso lugar , saber que as pessoas podem estar ali lendo um livro escrito por alguém de outra cidade, estado, país… É muito bom ver isso”, comemora. A própria mãe da professora, Raimunda Pereira, 65, não sabia ler; todavia, a criação da biblioteca oportunizou o contato dela com os livros, culminando em aprendizado e paixão pelas letras.
“Mudei muito minha forma de pensar, expressar e agir também”, considera Paula. “O meu interesse, com a iniciativa, é sempre expandir mais os meus conhecimentos e, principalmente, os da minha comunidade “.
Serviço
Plataforma O Brasil que Lê
Disponível neste link