Pratinho vendido na porta de casa fortalece Gastronomia de Calçada na periferia de Fortaleza

Seja nas festas juninas ou em outras épocas do ano, prática reforça cultura da comida comercializada na rua e atrai clientela pelo preço acessível e atendimento personalizado

Se em algumas partes de Fortaleza o pratinho só ganha destaque em feiras e quermesses juninas, na periferia a realidade é bem diferente. A delícia ocupa quase diariamente o cotidiano da população ao ser vendida na porta de casa, consolidando um movimento definido pelo Verso como Gastronomia de Calçada. Intenso, acontece de norte a sul da Capital.

E não se restringe apenas ao período junino. Virou tradição o público substituir o preparo do próprio jantar pela compra diretamente nas banquinhas – seja para comer nas mesas dispostas nos lugares de venda, seja para embalar tudo e apreciar o sabor no conforto do lar. Independentemente do formato, a prática alimenta e reforça a cultura alimentar na rua.

Na comunidade Sítio Córrego – pertencente ao bairro Mondubim – dona Edilene é conhecida pelos cobiçados pratinhos. Há quase três anos ela ocupa a própria calçada, de terça a sábado, com aquilo que faz o paladar vibrar. Arroz, baião, farofa, salada, lasanha, carne e o que estiver à disposição torna-se refeição para a clientela a partir de R$9.

“Iniciei o negócio porque precisava trabalhar, estava desempregada”, conta, detalhando ainda que já exercia ofício na Gastronomia. Anos antes, comercializava bolo de pote no mesmo bairro, embora em outro endereço. Até itens de café da manhã vendia. Foi a lida com pratinhos, contudo, que mudou a realidade da mulher e da própria família.

“Os amigos e seguidores do meu filho pediam muito para eu vender pratinho, e assim fiz. Ajuda a pagar o aluguel também”. O amor no preparo de cada insumo, aponta ela, é um dos diferenciais. Dona Edilene gosta de estar ali, mesmo em meio à correria da rotina, estendendo o raio de alcance da tradição alimentar.

O carinho pelo fazer é tão grande que até nos Estados Unidos é/o pratinho dela é falado. Aconteceu no início do estabelecimento, quando clientes vieram da Aldeota para experimentar o bendito. Ao se mudarem para o país estrangeiro, ficou a saudade daquele gosto que definitivamente marcou. “Dizem que pratinho igual ao meu eles não encontraram mais”, ri.

“Vendo também sopa, peixe à delícia, arroz de camarão, empadão, bolo… Já vendi em eventos, mas acho melhor na calçada de casa porque estou na minha residência e tenho uma clientela fiel. É um pouco cansativo, mas, quando você sabe que o sabor de sua comida agrada, é gratificante”.

Até bacalhau no pratinho

Em outro pedaço da cidade, no bairro Itaoca, o Pratinho na Esquina carrega já no nome a proposta de consumo e venda da iguaria. O estabelecimento começou a funcionar há exatos dois anos e de forma descompromissada. “Certo dia resolvi colocar bolos e pratinhos na calçada por ser um mês junino. A venda trouxe mais visibilidade e, assim, mais clientes”.

Quem diz é Everson Luis que, junto à esposa, Isadora Alecrim, prepara tudo a fim de garantir a qualidade e o retorno do público. Segundo o empreendedor, o diferencial dos pratinhos vendidos por eles está na quantidade de opções servidas – desde os tradicionais, com vatapá de frango e creme de galinha, até os especiais.

Nesta última categoria, estão inclusos escondidinho de carne, fricassê de frango, lasanha, vários tipos de carne, camarão e peixe à delícia. Na Páscoa e no Natal, até bacalhau é possível encontrar por lá. “Começamos às 8h cozinhando frango, carne e cortando as verduras; à tarde, começamos as montagens de pratos”.

Toda a parte de cereais e frango é comprada na segunda-feira. Verduras, por sua vez, são adquiridas ao longo dos outros dias, tendo em vista que os donos conseguem insumos mais novos. Às quintas e sextas é quando a casa – localizada na Rua Alberto Magno, 1920 – fica cheia. Não é raro encontrar pequenas filas no local.

Além do sabor, os preços são convidativos: tem de R$13, R$15 e R$18. “Hoje vivemos somente com a venda de pratinhos na nossa calçada. Preferimos esse comércio na porta de casa porque nosso retorno é maior. Mas também pegamos algumas encomendas para eventos. Aqui, somos fãs de pratinho. Onde vemos um, já compramos”, gargalha Everson.

“Esse tipo de comida agrega carboidrato, proteína e salada, trazendo, assim, mais praticidade ao dia a dia daqueles que não têm tempo para cozinhar à noite ou estão cansados da rotina”. No fim das contas, todo mundo sai ganhando – realidade também encontrada no bairro Jardim América com o Ponto do Pratinho. Há apenas dois meses na ativa, já é reconhecido.

Não é raro ver gente rodeando a casa onde está o empreendimento em busca da refeição preferida. Tudo começou quando a atendente de telemarketing Roberta Teixeira e a própria família cozinharam para aniversários e foram bombardeadas de pedidos. “A questão é que, em eventos, a rotatividade é bem maior. Vender em casa é diferente”, pondera.

Ela atribui à qualidade do que produz o ponto de diferenciação com outros pratinhos. “Temos embalagens de alumínio de 500g. As opções são arroz, baião, vatapá, salada, strogonoff de carne, creme de galinha, lasanha, porco trinchado e farofa. Nossos maiores dias de venda são quinta e segunda”. De forma a dar conta de tudo, foi necessário estratificar a produção.

Assim, uma pessoa sai para comprar insumos, outra prepara o espaço de venda, outra prepara os pratinhos e, assim, sempre por volta das 18h, está tudo pronto para servir. Tem de R$14 e de R$16. Contudo, por ainda estarem no começo do negócio e ser uma renda extra, ainda não conseguem se sustentar totalmente com o comércio. Ainda assim, reconhece o valor dele.

“O pratinho acaba se tornando um alimento democrático. Ele consegue atender a todas as classes sociais por meio de sua estrutura e também devido à diversidade de preços. Eu amo”.

Pratinho em todos os lugares

É joia com valor tão grande que rende até pesquisa. “Pratinho: de renda extra à comida de rua popular em Fortaleza” tem autoria da jornalista Izakeline Ribeiro e é vinculada ao Mestrado em Gastronomia da Universidade Federal do Ceará. 

O estudo reflete sobre essa prática tão comum, ao mesmo tempo tão curiosa, de haver pratinho disponível em todos os cantos da cidade e em todas as épocas do ano.

Conforme Izakeline, o que mais se repete na venda do alimento é a base da montagem, que consiste na escolha dos cremes e tamanho para definir o valor. “Do pequeno ao grande, o certo é que se começa pelo arroz ou baião de dois; os cremes são colocados na sequência, como vatapá e creme de galinha; depois, algum tipo de salada, paçoca ou farofa”.

A calabresa acebolada e a carne de sol desfiada, por exemplo – além de outros insumos – podem entrar como opção de mistura ou acompanhamento. Além dessa composição de base, cada pratinho pode ter pratos especiais para compor de acordo com a disponibilidade de quem faz e vende, como camarão, feijão verde e escondidinhos. O que vale é a criatividade.

“O comércio de pratinho muitas vezes começa na porta de casa ou em alguma praça perto. E acontece também de pessoas que começaram vendendo na calçada transformarem uma parte da casa em ponto comercial. O certo é que a venda está presente em todas as regionais da Capital”, observa a pesquisadora, outra apaixonada pelo quitute.

No trabalho comandado por ela, verificou-se que, para muitas pessoas – em especial, mulheres – o comércio de pratinho é forma de buscar dinheiro extra, rapidamente tornando-se a renda principal da casa. Além disso, uma vez ele permanecer ativo em várias épocas, já está incluso na cultura alimentar de Fortaleza.

A capital, não sem motivo, possui cenário complexo e multifacetado, em que tradições e influências externas se entrelaçam para formar uma identidade gastronômica. “O pratinho exemplifica essa diversidade. Suas adaptações evidenciam a dinâmica de escolha e formação do gosto. Assim, não apenas preserva raízes tradicionais, mas também se reinventa constantemente, refletindo mudanças e continuidades da cultura alimentar da cidade”.

De volta à comunidade Sítio Córrego – mencionada no início desta matéria – a autônoma Sara Lucas faz jus a essa adesão suprema da delícia: deixou de trabalhar de carteira assinada há dois anos para se dedicar ao empreendedorismo. O que antes envolvia apenas renda extra com venda de bolos, acabou se tornando algo consolidado com os pratinhos.

Os preços são bastante camaradas, entre R$7 e R$10. O que impera por lá é mesmo o formato tradicional, com creme de galinha, vatapá, arroz, salada, farofa e o acréscimo de mais uma opção, a exemplo de carne do sol, strogonoff de carne, almôndegas ou escondidinho de carne do sol. “A renda é em torno de R$2 mil, um complemento que ajuda a sustentar a família”.

O preparo começa cedo, às 7h; a venda, por sua vez, vai das 18h às 22h. A facilidade de estar na porta de casa e poder estreitar o contato com a clientela são apontados como os maiores atributos da prática. “Vendendo na porta temos contato diretamente com todos os clientes. Isso é muito bom. Às vezes eles viram amigos, é uma troca boa”,

Fugir do trivial feijão com arroz, assim, pode ser sinônimo também de carinho. A comida, não à toa, reúne e dignifica as relações. “Particularmente, amo comer pratinho. Combinar os sabores e ir além do habitual faz toda a diferença”.