Cedinho estava no Centro de Fortaleza. Domingo pede casa ou rua, e optei pela rua. O destino foi a Pinacoteca do Ceará, inaugurada na noite anterior. Paredes brancas reluzindo, aquele aroma de novidade. Gente ocupando os espaços, olhos devorando tudo. Nem precisava chegar ao término da visita para escutar à boca miúda: “Impressionante”.
Quis saber o que deslumbrava tanto ali. E, de fato, não é necessária a volta completa para constatar. Vizinha ao Complexo Estação das Artes Belchior, a Pinacoteca já nasceu maiúscula. Tudo nela remete ao convite e ao desbravamento – a começar pela expressão que intitula o conjunto de exposições desta primeira fase do equipamento: “Bonito pra chover”.
Passado o letreiro – lindíssimo, digno de uma fotografia logo na entrada, escolhido em tributo ao mestre Gilmar de Carvalho (1949-2021) – um painel destaca que a mostra “traz o festejo de um Ceará plural, desdobrado em suas potências e celebrado por sua força poética, diversa e insurgente”. Em resumo: artistas cearenses falando de um jeito cearense sobre o mundo.
Fomos conferir. São 982 obras ao todo, divididas em três mostras. A primeira é a “Se arar” – brincadeira linguística e semântica com o nome do Estado a título de celebrar o plantio da criatividade. Totalmente fragmentado, o acervo dessa seção propõe o diálogo entre artistas, épocas, perspectivas e suportes a fim de oferecer diferentes narrativas visuais.
É onde encontramos obras de Sérvulo Esmeraldo (1929-2017), Raisa Christina, Narcélio Grud, José Guedes, Hélio Rola, Terroristas Del Amor, entre outros – clássicos e contemporâneos, consagrados e iniciantes, do interior e da Capital. O resultado é hipnotizador, sobretudo por um detalhe: a estrutura da mostra é feito um rio.
Quando for lá, perceba. Cada seção dentro da mostra principal é como se fosse um afluente. Nada é estanque. As visualidades dançam fluidas perante os olhos. Em um momento, estamos na temática “Ancestralidade e natureza” e, de repente, passamos para os próximos – “Cearás fabulados”, “Dilatações visuais”, “Multiespécies”, e assim vai. Baile artístico.
Instalações, sons, projeções e toda espécie de linguagem despertam a atenção do público. Quem não se sentirá intrigado a falar no grande “telefone sem fio” que é a obra de Eduardo Frota, na qual uma pessoa fala de um lado e outra pessoa escuta do outro? Ou não sacará o celular do bolso para fotografar ou ser fotografado nos imensos e incorrigíveis painéis do Acidum Project, de Aline Albuquerque e Haroldo Saboia?
Tem até um píer no espaço expositivo, ideia da artista Valéria Américo – sim, é possível andar nele. Pinturas, bordados, fotografias, pinturas, esculturas e toda sorte de projetos completam a experiência arquitetada por cinco curadores. É tudo muito, numa confusão boa. Por um momento, você não sabe para onde olhar, mas logo descobre: a vontade guia.
Antônio Bandeira e amor
Crianças correndo de um lado para o outro, experimentando as obras, é cena comum. Adultos de diferentes faixas de idade também não se contêm. É bonito presenciar o semblante de surpresa quando se desbrava um novo universo. Tal como a mostra “Amar se Aprende Amando”, com 645 obras de Antônio Bandeira (1922-1967).
Um grande letreiro – mais uma vez, pausa para foto – anuncia o começo da exposição, cujo nome está presente num poema de Carlos Drummond de Andrade (1902-1987) dedicado ao pintor e desenhista cearense. O grande diferencial aqui é desnudar Bandeira. Não à toa, autorretratos do artista pegam o visitante de cara, chamando para entrar.
Diferentemente da “Se Arar”, “Amar se Aprende Amando” investe numa tessitura mais íntima, em tons de preto e branco. Paredes negras resguardam não apenas alguns dos grandes trabalhos de Antônio, como também sublinham o processo criativo dele por meio de rabiscos, esboços e traços simples. Prato cheio para a imersão.
Esse mergulho nas engrenagens do pensamento se reflete na arquitetura do espaço – existem curvas no teto, em diálogo com uma obra específica do homenageado. E, principalmente, numa maior vontade de permanecer no espaço. É difícil se despedir dele, queremos ficar. Mas não é preciso a partida definitiva. Na sequência, ele permanece.
Processos inacabados
Fica porque está em total conversa com o grande amigo Aldemir Martins (1922-2006), grande nome da exposição “No Lápis da Vida Não Tem Borracha”. Inclusive, a transição entre uma exposição e outra é engenhosa e não menos delicada. Uma espécie de túnel com autorretratos e uma fotografia de ambos sela a parceria inscrita no infinito.
Aqui, o que ganha notoriedade é a multiplicidade de assuntos. Temos Aldemir homenageando a companheira, a filha, o futebol, ilustrando clássicos da literatura brasileira e moldando esculturas com a característica imagem de galos – poética bastante presente nas obras sob a assinatura dele. São projetos das décadas entre 1940 e 1960.
Não existe lugar certo para entrar e sair: o mesmo painel dá acesso à exposição, o que torna ainda mais especial uma instalação com o desenho do sol de Martins. O acúmulo de pessoas comprova ser esse um dos espaços certos para aquele registro caprichado – um raio brilha na obra, brincando com a possibilidade de luz e sombra. Ilumina as coisas e as pessoas.
Já estamos de novo no ponto inicial, o pavilhão da “Se Arar”. Converso com quem também está ali pela primeira vez. A família do professor Alessandro Menezes, 31, está encantada. A pequena Aurora – filha dele com a enfermeira Rebeca Azevedo, 26 – corre pelo piso.
“A Pinacoteca é algo que o Ceará precisa. Achei interessante o fato de ter muitas obras de artistas diferentes, assim conhecemos pensamentos diferentes e conseguimos colocar o nosso próprio, baseado em tudo isso”.
Mais à frente, o casal Danrley, 27, e Bianca, 24, está igualmente em êxtase. “Está tudo muito bonito”, diz ela. “A gente até aconselha que outras pessoas venham, para aproveitar o que a cidade está proporcionando aos fortalezenses”, convida ele.
É um equipamento acumulador – no melhor dos termos. A Pinacoteca nasce com o objetivo de salvaguardar todas as obras do Estado. Em breve, será desenvolvido o núcleo educativo da casa sob o princípio do museu-ateliê, na qual será aberta a possibilidade de criar e contemplar. Por enquanto, agendamentos escolares e a própria visita do público geral fazem do território um acúmulo de oportunidades.
Na quarta-feira (7), o Festival Solar ocupará mais um espaço do lugar com a exposição de fotografias “Negros na Piscina”. A mostra se juntará à “Bonito pra Chover” – esta com duração programada até metade de 2023.
Agora estou perto de sair do equipamento. Vejo o café aberto especialmente para o local. Também tem aquele cheiro bom de novidade. Ganho a rua de novo, continua sendo domingo. No íntimo, o magnético percurso caminhará pelos próximos dias – se bem que “magnético” não é palavra tão adequada. A Pinacoteca é impressionante.
Serviço
Pinacoteca do Ceará
Rua 24 de maio, S/N, Praça da Estação, Centro. Funcionamento: de quinta a sábado, das 12h às 20h (último acesso às 19h); aos domingos, de 10h às 18h (último acesso às 17h). Entrada gratuita. Mais informações pelo perfil do equipamento, no instagram, e pelo site.