“E agora, José?”. 79 anos depois de Carlos Drummond de Andrade (1902-1987) ter movimentado a poesia brasileira com o famoso questionamento, a pandemia de Covid-19 faz nova frente à incógnita. O que fazer quando a luz apaga, o povo some e a noite esfria? Como lidar com o tempo que se alonga e continua a avolumar os efeitos do isolamento compulsório, das inúmeras perdas de pessoas queridas e da amarga sensação de que toda essa atmosfera não vai ter fim?
Maria Júlya, Valentina Santana, João Victor Arcanjo e Guilherme dos Reis procuram apontar um caminho. João Carlos, Elenilda Costa e Maria Flor também. Alguns ainda crianças, outros adolescentes, eles integram uma vigorosa teia de trabalhos cujo foco é fazer com que ações culturais e artísticas não esmoreçam neste delicado momento de crise generalizada. Pelo contrário: por meio dessas iniciativas, cada um deles exerce um protagonismo que desconhece idade e tamanho, capaz de chegar aos mais diferentes territórios.
De acordo com o último Censo Demográfico realizado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), Fortaleza contava com quase 554 mil crianças e adolescentes em 2010, número que representava 22,6% da população total.
De lá para cá, diversas mudanças no panorama social, político e tecnológico suscitaram o remodelamento comportamental dessa faixa de indivíduos, tornando-os cada vez mais ativos e presentes na esfera pública.
Nesse sentido, a inclinação para o desenvolvimento artístico ganhou expressivo fôlego, sobretudo neste cenário pandêmico, quando os pequenos e pequenas, de mãos dadas com a família, puderam se voltar para si e redescobrir talentos. Resultado: pouco a pouco, estão potencializando novos modos de estar presente no mundo, inspirando pelo fazer.
Segundo a arte-educadora Luciane Germano Goldberg – professora adjunta do Departamento de Teoria e Prática do Ensino da Faculdade de Educação da Universidade Federal do Ceará (UFC) – a arte e a cultura formam nossas bases sensíveis, estéticas, intelectuais, sociais, comunicacionais e existenciais.
“No lugar de fazedores de arte – quando cantamos, dançamos, dramatizamos, pintamos, fotografamos etc. – há uma série de aprendizagens específicas em cada uma dessas áreas que trarão múltiplas contribuições em diversas dimensões, responsáveis por desenvolver nossos sentidos e sensibilidade e por permitir meios de expressão, reflexão e elaboração em interação com o mundo”, considera.
Desta feita, conforme a estudiosa, crianças e adolescentes precisam ter a oportunidade de fruir e criar desde a mais tenra idade, descobrindo os potenciais que a arte têm de informar e formar, de proporcionar experiências significativas, de ampliar repertórios e conhecimentos de mundos, de questionar, criticar e transformar ideias, conceitos e espaços.
“Nos empoderamos de nós mesmos quando aprendemos sobre nossa singularidade e potencialidade, quando percebemos que temos o que trazer ao mundo e quando temos espaço para colocar em movimento o que nos habita. A arte, nesse caso, é uma ‘ferramenta’ detonadora dessas possibilidades de ser e de ganhar existência”, observa.
Estímulo constante
Os desafios para isso, contudo, são grandes, haja vista o contexto social, econômico e cultural de cada realidade. Oportunidades e possibilidades são bastante distintas para crianças em posição privilegiada em detrimento daquelas que se encontram em extrema vulnerabilidade, por exemplo.
Não à toa, Luciane Goldberg situa a importância de políticas públicas que valorizem a arte e a cultura entre o público infantil, bem como o papel dos pais e/ou responsáveis e educadores nesse processo de apreensão do conhecimento intuitivo.
É fundamental valorizar os meios expressivos das crianças e adolescentes na sua singularidade, saber acolher e criar espaços para a expressão e a criação, sem impor modelos, tolher, castrar, expor, obrigar e comparar.
“Toda criança e adolescente tem o direito à cultura e à arte, está na Declaração Universal dos Direitos Humanos e no Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), em que tanto deve ser garantido o direito à fruição. Nesse horizonte, a arte se configura como um elemento de formação, de reconhecimento de si como um ser singular, único e especial que possui um universo subjetivo próprio e capacidades que devem ser desenvolvidas e respeitadas. Pais/responsáveis e educadores (as) têm papel preponderante em zelar por esses direitos”.
Crianças no centro do fazer
Assessora de Juventudes do Centro de Defesa da Vida Herbert de Souza e integrante do Grupo Invenções das Crianças da comunidade Nova Canudos, localizada no bairro Canindezinho, região do Grande Bom Jardim, Ingrid Rabelo reitera essa ideia ao tecer detalhes de seu cotidiano junto aos pequenos do lugar. Na fala da profissional, fica nítida a potência da atuação infantil no campo artístico-cultural.
“Eles se mobilizam de várias formas, fazendo algumas esquetes, por exemplo, se auto-organizando para poder se apresentar e refletir sobre os contextos em que atravessam”, dimensiona. Muito dessa atuação nas Artes Cênicas nasceu a partir de uma antiga parceria com o Centro Cultural Bom Jardim.
Por sua vez, em 2019, por meio de um enlace com o “Maquinarias”, projeto de extensão do curso de Psicologia da UFC, estabeleceu-se uma aproximação ainda maior com os miúdos a fim de construir, com eles, reflexões sobre o ser criança numa região periférica.
“Logo no primeiro dia, as crianças decidiram que o nome do grupo seria ‘Invenções das Crianças de Nova Canudos’, um espaço de criação e escuta para que elas saibam que também possuem sabedorias e experiências possíveis de serem compartilhadas”, explica Ingrid.
“É uma rede de mobilização, afetos e criatividade que elas constroem conosco e com seus familiares”.
O protagonismo dos pequenos é sentido por meio de ações culturais e também em movimentos de promoção de rifas ou visitas pelo bairro com o intuito de conhecer outros projetos, estreitando os laços com o entorno. Para Ingrid, toda essa movimentação gera sustentabilidade ao grupo, fazendo com que a infância não seja silenciada.
“É a arte e a cultura que possibilitam essa mistura e envolvimento entre elas de modo que possam refletir sobre o mundo e os diferentes espaços que cada uma atravessa, como a escola, a comunidade e a família. As crianças estão em movimento, ocupam uma centralidade, expressando o que acreditam e querem para si e os seus”, sublinha, elencando, além das atividades com teatro, dança e outras expressões artísticas, a participação de três membros do grupo também no Maracatu Nação Bom Jardim, otimizando novas frentes de trabalho, cada vez mais conscientes e críticas.
“Se a gente acredita e percebe os resultados, o efeito que a arte tem na vida dessas crianças, nós, ao mesmo tempo, buscamos fazer com que a educação também tenha essa abertura, promovendo e incentivando a participação dos pequenos em vários setores, rompendo o ciclo da pobreza e da criminalidade, por exemplo, além de uma otimização na questão emocional”.
A partir de amanhã (28), você conhece as histórias de quem abraça essas particularidades e faz delas um farol de estímulo e inspiração. Ficará por dentro das jornadas de Marya Júlia e Valentina Santana, meninas que encontraram, na dança e no teatro, uma forma de se conectar consigo e com outras crianças por meio das redes sociais.
Assim como Maria Flor Caminha, cuja inclinação para a música fez-lhe renascer durante a pandemia e se tornar a primeira criança a ter um projeto apoiado pela Lei Aldir Blanc, em ampla concorrência, em Fortaleza.
Saberá também dos esforços de João Victor Arcanjo, João Carlos e Elenilda Costa para que a leitura seja cada vez mais presente no cotidiano das pessoas. Um desafio igualmente encarado por Guilherme dos Reis, idealizador do projeto “Doe Livros Fortaleza”.
São passos-sementes dados por pequenos protagonistas, que encontram, no espírito de reinvenção, a mola-mestra para transformar os horizontes, o mundo. Para melhor.
> Nesta sexta-feira (28), confira a primeira reportagem da série "Pequenos protagonistas", sobre a história de Guilherme dos Reis, um estudante que, aos 18 anos, articula 14 voluntários em uma ação cujo objetivo é promover o acesso de pessoas à literatura e à informação.