Quem viveu, sabe. Ninguém ficava desamparado ao retornar das festas de forró em Jericoacoara nos anos 1990. Em plena madrugada, funcionava a Padaria Santo Antônio, famosa por fornecer aos clientes, a partir das 2h da manhã, deliciosos pães quentinhos servidos com café – ideal para quem tinha extrapolado no álcool e queria matar a fome.
O estabelecimento abriu as portas em 1995 e, pouco a pouco, tornou-se patrimônio da cidade. Pautou revistas e jornais nacionais, com exibição inclusive no Globo Repórter. O burburinho, totalmente justificado, rendeu-lhe a alcunha de “Padaria da Madrugada” e abriu espaço para que mais pessoas conhecessem o estilo peculiar de produzir e servir quitutes.
A história começa quando Antônio Marques de Vasconcelos teve a ideia de fabricar pães para sustentar a família. Ele mesmo fez um cilindro de madeira artesanal a fim de produzir as delícias. O preparo acontecia no quintal de casa, debaixo do alpendre, e com auxílio de dois dos 12 filhos, Manoel e Antônio. Ambos já haviam sido funcionários de uma padaria.
Os pãezinhos eram fabricados no início da noite com ajuda de toda a família – incluindo a esposa de seu Manoel, dona Alzira. Os primeiros eram de massa de coco, responsável pelo aroma inconfundível sentido por quem passava ao redor. Conta-se que muitos se aproximavam da cerca de arame farpado só para garantir os pães assados no forno à lenha.
“Tinha até fila para entrar na padaria”, lembra Lucimar Marques, uma das filhas de seu Manoel e dona Alzira. Hoje costureira e presidente do Conselho Comunitário de Jericoacoara, foi ela uma das envolvidas na recriação da Padaria Santo Antônio no último domingo (20) durante o evento Sesc Povos do Mar - Circuito Jeri.
A ação visou resgatar a memória afetiva dos moradores por meio de um dos estabelecimentos mais emblemáticos do município. Foi a segunda vez que isso aconteceu. Na ocasião, a família dos proprietários originais produziram pães e distribuíram a todos os presentes, recriando a atmosfera acolhedora e comunitária de antigamente. Detalhe: de madrugada.
“Embora seja a segunda vez que realizamos essa atividade, cada edição é única devido às novas interações e percepções que surgem. A diferença está nas emoções e experiências individuais de cada participante, que enriquecem a vivência e reforçam a importância de preservar essa tradição”, diz Sabrina Veras, diretora de Programação Social do Sesc.
Tempo passa, memória fica
Hoje ainda existe uma Padaria Santo Antônio em Jericoacoara, mas não pertence à família original nem possui o hábito de abrir durante a madrugada. Funciona apenas durante o dia, com outro cardápio e forma diferente de produzir o pão. Também não está no mesmo lugar da primeira, embora pertença ao mesmo terreno.
Segundo Lucimar Marques – ainda no movimento de recordar a jornada do lugar – inicialmente o pai vendia rosca e um amigo mineiro o incentivou a fazer pão. A peculiaridade do primogênito consistia em investir na simplicidade e na criatividade. Não sem motivo, aos poucos foi capaz até de criar sabores específicos. Pães de chocolate, de banana e com queijo fizeram a festa de muita gente voltando do forró.
“Com o passar do tempo, meu pai, já cansado da idade, entregou a padaria aos filhos para que continuassem com os negócios. Mas cada um fez outras escolhas, e há oito anos o estabelecimento fechou”, divide, feliz pela oportunidade de resgatar essa trajetória mais uma vez. Para ela, sobretudo após o falecimento dos pais, em 2020, é privilégio.
“No ano passado tinha mais de 200 pessoas querendo um pãozinho. Nossas memórias vêm dos troncos velhos. Hoje, somos os galhos que ainda estão aqui. Isso fará a história ser compartilhada entre nossos filhos e netos, as folhas dessa história”.
Manter viva a tradição
Sabrina Veras destaca que o resgate cultural da Padaria Santo Antônio é fundamental para manter vivas as tradições que moldam a identidade de Jericoacoara. “Preservar a memória é essencial para fortalecer os laços comunitários e garantir que as histórias, práticas e valores do passado continuem a inspirar e orientar as futuras gerações”.
Ela mesma chegou a conhecer a padaria há mais de duas décadas, quando visitou Jericoacoara como turista com um grupo de amigas. À mente, vem a expectativa de aguardar a abertura do estabelecimento nas primeiras horas da madrugada.
“Ao chegarmos, encontramos não apenas pães frescos e deliciosos, mas também uma comunidade unida, envolta em um espírito de amizade e solidariedade. Era um ponto de encontro que refletia a essência cultural de Jericoacoara, proporcionando uma experiência autêntica que desejamos reviver e compartilhar com todos”. Tem dado certo.