O que explica termos tantos filmes de super-herói nos cinemas?

“Homem-Aranha: Sem Volta para Casa” segue dominando a maioria das salas no Brasil e 2022 ainda promete outras produções do gênero para o público

É noite num shopping de Fortaleza. Para evitar fila, um casal tenta comprar os ingressos da sessão nos terminais de auto atendimento do cinema. Após rápida pesquisa, o comprador se admira e chega a pensar alto sem querer. "Mas, só tem do Aranha?".  

A cena testemunhada reflete o domínio de “Homem-Aranha: Sem Volta para Casa” no circuito exibidor brasileiro. O “Amigo da Vizinhança” é fenômeno de arrecadação em meio à pandemia, cujo cenário foi afetado pelo cancelamento de filmes e fechamento de cinemas. 

Levantamento da consultoria Camscore aponta mais de 14 milhões de espectadores no Brasil e cifras superiores a R$ 260 milhões nas bilheterias. Sem contar o terreno das séries, 2022 ainda promete outras 10 produções de quadrinhos nas telonas. É possível explicar a recente febre em torno dos “filmes de herói”? 

Razões do sucesso

Direto ao ponto, o crítico de cinema e comunicador, PH Santos, defende que o lucro é quem comanda as regras do jogo. Mesmo assim, avalia, é preciso entender que todo movimento do cinema americano teve a popularidade medida nas bilheterias. Foi assim no passado com as comédias românticas, faroestes, os filmes de ação nos anos 90. 

“A diferença talvez é que os filmes de quadrinhos podem passear por diversos gêneros e, por isso, conseguem ser muito explorados e não enjoar tanto o público. Entretanto, nota-se uma certa saturação quando a própria Marvel precise que hoje todo e qualquer filme de quadrinhos da empresa seja quase como um 'filme-evento', lotado de personagens, de participações especiais, curiosidades, referências e etc, o que me leva a pensar se os personagens sozinhos não funcionam mais?”, questiona.  

Para o designer, ilustrador e mestrando pelo Programa de Pós-Graduação em Artes (UFC), Gabriel Monte, a garantia de retorno fácil e imediato é um atrativo sem igual para os estúdios. Contar com uma base de fãs facilita a chegada de novas apostas a cada ano.  

Disney e Warner são donos e detentores dos direitos de personagens e histórias em quadrinhos já lidas, testadas, aprovadas e desaprovadas por um público. Assim, são necessários menos esforços criativos para filmes e séries”
Gabriel Monte
Quadrinista e pesquisador pelo pelo PPGARTES - UFC

Segundo o jornalista, criador e coordenador do programa Uplay (exibido na TV Diário), Matheus Barros, a consolidação dos heróis nas telonas obedece a todo um aspecto cultural que envolve a cultura geek dos últimos 40 anos.  

Os anos 1980 popularizaram os videogames, RPG e a era dos blockbusters, como "De Volta Para o Futuro" (1985). Porém, adverte o entrevistado, boa parte destas obras e seus fãs eram alvo de "bullyng". O cenário mudou e o conteúdo "nerd" ganhou status de cultura pop e atingiu o topo no setor de entretenimento.   

O fato é que aquelas crianças oitentistas, noventistas, cresceram! Elas são, hoje, adultos com trinta e poucos anos, quarenta... Pais e mães com potencial de compra, que repassam essa cultura para os filhos. Eu acho que foi essa geração que fez mudar a atual". 

Muito dessa popularização acompanha o acesso a tecnologias, casos do streaming e das redes sociais. Com isso, toda uma geração geek do passado passou a ter mais voz. Comentar sobre super-heróis no Twitter deixou de ser motivo de vergonha. “Isso tudo caminhou junto, sabe? A cultura pop e geek é o maior mercado de entretenimento do mundo e deve continuar sendo, pois, ela engloba a todos. Não é elitista, não é segmentada. Todo mundo acha algum herói que se identifica, algum game que gosta de jogar, algum hobby que se encaixa no seu dia a dia", comenta. 

Heranças  

Longas-metragens baseados em HQs sempre fizeram parte da indústria de Hollywood. Parte desse material advém dos seriados de TV dos EUA. "Mandrake, O Mágico" (1939) e "As Aventuras do Capitão Marvel" (1941) são citados entre os pioneiros da matéria.  

Entretanto, há quem defenda que os quadrinhos e audiovisual se encontraram em “Judex” (1916). Nessa produção francesa da era do cinema mudo, o protagonista é um vigilante que esconde a real identidade para combater o crime. Alguma semelhança com Batman? 

Em 1978, o slogan “Você vai acreditar que o homem pode voar” anunciava a chegada de um sucesso. “Superman - O Filme” consolidava de vez a imagem do herói na sétima arte. Êxito semelhante apenas em 1989, quando "Batman” ganhou a versão gótica de Tim Burton. 

“Adaptações sempre existiram, se antes as obras literárias eram as mais transcriadas no cinema, hoje a bola está com os quadrinhos de super-herói. O problema estaria em sempre buscar por algo já consolidado, com uma grande base de fãs, fazendo com que as narrativas não precisem ser bem trabalhadas para fazerem sucesso, o que leva a um empobrecimento da arte, principalmente se considerarmos que quando esses filmes estreiam, tomam grande parte das salas, deixando pouco espaço para os demais", alerta Gabriel Monte. 

Anos 2000 e consolidação 

Mesmo com “Blade” (1998) recuperando o filão de heróis no cinema no fim dos anos 1990, a retomada costuma ser creditada a “X-Men - O Filme” (2000). Com pouca grana (para os padrões do cinema blockbuster), o diretor Brian Singer superou a desconfiança do mercado e emplacou a história dos mutantes numa era influenciada pelo sucesso de “Matrix” (1999).   

No livro "The Comic Book Film Adaptation: Exploring Modern Hollywood's Leading Genre", o autor Liam Burke estipula que a primeira década do século XXI testemunha a efervescência das adaptações.  A definição “Era de Ouro do Filme de Quadrinhos” veio após entrevista do pesquisador com o produtor executivo Michael E. Uslan.

O veterano entende do assunto. Desde 1982, ano em que produziu “O Monstro do Pântano” (da DC), Uslan coleciona trabalhos na área. Fez dos Batman (de Burton e Christopher Nolan)  à “Constantine” (2005). Burque afere as características que marcam essa dita “Era de Ouro”.

O boom pós “X-Men" reúne a exaltação do heroísmo pós ataques terroristas de 11 de Setembro (2001), avanços tecnológicos no cinema, conteúdo pré-existente que facilita a criação de franquias e a melhor receptividade dos figurões da indústria para com os materiais dos quadrinhos.  

Estes “anos dourados“ estão sob a mira de nomes respeitados do cinema norte-americano. Martin Scorsese criticou os “filmes de herói” e atraiu o enxofre das redes sociais ao comparar estas obras com a experiência de ir a um parque temático. “Não é o cinema de seres humanos tentando passar experiências emocionais e psicológicas para outros seres humanos”, defendeu. 

Inimigos do cinema?

Com a repercussão, o criador de “Taxi Drive” (1975) voltou a explorar o tema nas páginas do New York Times. Hoje, existe “entretenimento audiovisual” e há cinema, estipulou o cineasta. “Temo que o domínio financeiro de um esteja sendo usado para marginalizar e até menosprezar a existência do outro”. 

Menos polido nas palavras, Ridley Scott foi o mais recente a esquentar o debate. “Eles são entediantes para c**alho", soltou o inglês. “Os roteiros são muito ruins. Eu acho que três dos meus filmes são filmes de super-heróis: ‘Alien’, ‘Gladiador’ e ‘Blade Runner’. Porque os filmes de super-heróis não têm histórias boas hoje em dia?”, alfinetou. 

Matheus Barros pondera a necessidade de cuidado ao emitir opiniões sobre estas obras cinematográficas. O fato de “Homem-Aranha: Sem Volta para Casa” ser um fenômeno de audiência resulta do longo projeto de universo compartilhado da Marvel. O espectador quer ver cada filme para entender o todo, principalmente se é um grande evento, como foram os casos de "Vingadores Guerra Infinita" e "Vingadores Ultimato", argumenta.

"Era triste, por um certo modo, ver que quase todas as salas de cinema do mundo estavam exibindo um único filme, esse lado eu entendo. Mas as salas lotavam. Então o público queria isso, concorda? Não dá pra negar que era um evento. Esses dois filmes eu nem consigo analisar como um longametragem normal. Não dá! Pra mim foram eventos. A experiência de ter visto com um público eufórico, na pré-estréia, todas as histórias contadas durante 10 anos, encerrando um grande arco, foi surreal. Foi uma experiência. Algo que o cinema não tinha antes. A experiência de assistir um Quentin Tarantino é outra. É cinema, também, mas é diferente", enumera. 

O jornalista detalha que a Marvel está atenta às críticas e cita o caso de “Eternos”, cuja diretora contratada foi a oscarizada e respeitada Chloé Zhao. “Ela fez um trabalho diferente, bonito, contemplativo. Para mim, o que falta é entendermos, com essa mudança, como não anular por completo os outros estilos de cinema, principalmente os mais clássicos", resume Matheus Barros.  

PH Santos considera um “absurdo” que as salas de cinema no Brasil sejam dominadas por um só filme. Em cartaz no mesmo período, "Casa Gucci", "Amor Sublime Amor" (novo trabalho de Steven Spielberg) e “Turma da Mônica Laços” foram praticamente soterrados, descreve. “Eduardo e Mônica” até mudou de data. 

Para o especialista, é preciso estudar a reserva de mercado de modo a proteger o cinema nacional não só de blockbusters, mas da indústria estrangeira. Rodar filmes brasileiros significa fomentar os produtores locais. “A falta de opção é ruim em tudo que se faz na vida, mas a falta de opção para com a arte é pior ainda. Precisamos de pluralidade de entretenimento, de arte, de gostos, de estilos, e rechear 80% dos cinemas brasileiros com apenas uma opção é praticamente anular qualquer outra possibilidade de escolha”, finaliza PH Santos. 

Difícil precisa quanto tempo essa "Era de Ouro" deve ainda reinar em Hollywood. Concluímos a conversa com a observação nada animadora de Martin Scorsese. "Para quem sonha em fazer cinema ou está apenas começando, a situação neste momento é brutal e inóspita para a arte. E o simples ato de escrever essas palavras me enche de uma tristeza terrível".