O cinema uniu Lázaro Ramos e Quixadá. Bastou pisar pela primeira vez no município do Sertão Central cearense para o ator baiano reconhecer. “Quando cheguei, toda a paisagem era muito familiar. Falei: ‘Ah, então aqui foi filmado ‘O Cangaceiro Trapalhão’”. Então fui identificando lugares e paisagens de vários filmes que eu vi”, conta ao Verso.
Agora ele também integra um projeto que se vale do cenário quixadaense para ganhar a telona. Novo longa de Allan Deberton, “Feito Pipa” encerrou as filmagens no último domingo (15) e traz Lázaro na pele de Batista. Segundo o intérprete, o homem teve um filho com um grande amor, e precisa lidar com as consequências do assassinato da esposa.
O crime fará o filho dos dois ser criado pela avó e, pouco a pouco, enfraquecer a convivência com o pai – que, embora motorista de caminhão de carro-pipa, constitui uma nova família, com esposa e filha, e dedica maior atenção a elas. “Esse menino, o outro filho, fica ali em outro lugar e é de outro jeito, alguém que grita por liberdade, pelo direito de ser quem é”.
Quando pai e filho precisam conviver de novo, Batista não sabe como criar a criança. Tem certeza do amor que sente por ela, mas não possui os recursos necessários para ser o pai que o menino precisa. Não à toa, para Ramos, o personagem vive a experiência do nascimento de um pai – ou, pelo menos, o pai ideal para aquele garoto. Sem fórmula definida, mas se permitindo se transformar também, apesar dos próprios preconceitos.
A complexidade emocional do roteiro foi o que cativou Lázaro a embarcar no projeto. Ele mesmo se ofereceu a Allan Deberton para estar no filme. A conversa entre os dois aconteceu logo após a exibição e repercussão de “Pacarrete” no Festival de Cinema de Gramado, em 2019. Poucos meses depois, o roteiro já estava em mãos.
“É um filme que contempla tudo aquilo que eu acredito que o cinema pode oferecer ao espectador. Provoca uma bela experiência, fala sobre um assunto absolutamente relevante, com personagens muito bem definidos, carismáticos e envolventes. Quando li o primeiro tratamento do roteiro, já sabia que queria fazer parte dessa família”.
E completa, ao refletir sobre a atual cena do fazer cinematográfico. “Hoje em dia temos tantos roteiros previsíveis, que a gente já sabe como vai terminar... Às vezes assistimos a um filme e voltamos pra casa com uma sensação meio morna. Não é o caso desse. Esse é um filme pra se apaixonar”.
Como a história surgiu
“Feito Pipa” nasceu da inquietação de André Araújo, roteirista do longa. A história surgiu quando ele visitou as ruínas de uma cidade submersa, reaparecida após longa estiagem. “Aquela paisagem me marcou profundamente e se tornou o pano de fundo para a história de Gugu e Dilma. Mas eu não queria falar sobre seca, mas sim sobre memória e identidade”.
O filme, então – adjetivado como “filme-sonho” – é fruto desse desejo de apresentar o sertão que existe dentro de André e de projetar novas imagens e imaginários sobre ele. Cenário que não se limita às representações tradicionais, mas que acolhe outras perspectivas e corpos.
Nesse cenário, nasce Gugu, um menino que desafia as expectativas de gênero e se move entre forças aparentemente contraditórias. Ele pinta as unhas e usa pregadores de roupa como brincos. Ao mesmo tempo, é valente feito Lampião. Também ama dançar e rebolar, mas é igualmente habilidoso no futebol.
O roteiro começou a tomar forma em 2019 no Lab Cena 15, da Escola Porto Iracema das Artes, ao lado de tutores como Karim Aïnouz e Sérgio Machado “Foi uma experiência transformadora”, revela André. “No fim do laboratório, fui contemplado com uma bolsa para integrar a Incubadora Paradiso, onde tive a oportunidade de trabalhar com Camila Agustini, como consultora”.
O processo de desenvolvimento – “longo e cheio de reescritas, mas extremamente enriquecedor” – trouxe novas descobertas, seja sobre os personagens, o enredo ou até mesmo sobre o próprio André como roteirista. “No fim, a história amadureceu junto comigo, e acredito que isso se reflete no filme que ‘Feito Pipa’ se tornou”.
Ceará como cenário
A escolha do Ceará como plano de fundo não foi à toa, claro. Durante o mestrado, André estudou como o cinema cearense constitui um arquivo de imagens e ideias sobre o Estado. Logo, traz isso no horizonte sempre que escreve sobre a própria região – não só como compromisso, mas como desejo de contribuir com a atualização desse imaginário, indo além dos estereótipos e da sub-representação que marcam as representações do Nordeste no geral.
É o que justifica o fato de o Ceará de “Feito Pipa” ser multifacetado. “É um sertão conectado, movimentado e politizado. É o sertão dos carros-pipa, das barragens. Mas é também o sertão íntimo das memórias de Dilma e o sertão afeminado de Gugu. Esses dois universos coexistem, criando um retrato sensível da região”, detalha o roteirista.
Assim, em vez de explorar a visão folclórica ou exótica frequentemente associada à região, André busca humanizar, por meio dos personagens e das histórias deles, temas urgentes, a exemplo do Alzheimer e da homossexualidade na infância – “tema extremamente necessário, principalmente em um país onde pai mata filho simplesmente por gostar de lavar louça”.
“Em certa medida, Gugu é como um ‘espelho invertido’, uma extensão de tudo o que eu não fui ou não consegui ser. É através dessa história que reencontro minha criança que cresceu no interior do Ceará e danço com ela, jogo futebol, empino pipa. Em Dilma, enxergo minha avó, que me criou e a quem chamo de mãe. Nossa relação cheia de amor e arenga empresto para os personagens. A escrita nos dá essa liberdade de ser feito pipa, errante, incerta”.
Além disso, o roteirista ainda comenta a relação com Allan Deberton e de que forma Lázaro Ramos é representativo para o projeto. Sobre o primeiro, tem a alegria de dividir a mesma cidade-natal, Russas, e várias outras parcerias, incluindo o já citado “Pacarrete”; um espetáculo musical; um telefilme; e, mais recentemente, uma série para a Disney, com lançamento em breve. “No próximo ano, ele também vai produzir mais dois longas que assino como roteirista. Cada colaboração só reforçou nossa sintonia criativa e admiração”.
Com “Feito Pipa”, essa união se torna ainda mais especial. A história do filme traz cenário e temas que Allan compreende profundamente, pois vêm das mesmas vivências no interior do Ceará. “Ele não apenas entende o contexto da narrativa, mas ajuda a potencializá-la com um olhar sensível e comprometido. Trabalhar com Allan é sempre uma troca rica, e sua contribuição é indispensável para que o filme ganhe vida do jeito que imaginei”.
Lázaro, por sua vez, é simbólico nesse trabalho porque uma das referências para a construção de Gugu foi a personagem Madame Satã, interpretado por ele no filme de Karim Aïnouz. “Lázaro é um artista que constrói junto, e isso é fundamental para um filme como este, que se apoia na sensibilidade e na autenticidade dos personagens. Sua interpretação carrega verdade e intensidade, fazendo com que o roteiro ganhe corpo de uma forma rara no cinema”.
Filmar em Quixadá
Notadamente entusiasmado pelas possibilidades oferecidas pelo longa, Lázaro Ramos diz que filmar em Quixadá provoca sensações bonitas. Na visão dele, para onde se vira a câmera é possível encontrar cinema na cidade. “Estou desfrutando muito daqui, e de forma cultural – visitando lugares, conhecendo pessoas, indo a museus, nos monólitos e vendo esse pedaço do Brasil tão precioso”, festeja.
Ao mesmo tempo, também celebra o cinema cearense, creditado pelo ator como território de produções com “sabor local”, mas capazes de provocar reações diversas. “Já vi ‘Bem-vinda a Quixeramobim’, ‘Motel Destino’, ‘Pacarrete’... São filmes que nos aproximam de vários gêneros e da sensibilidade de qualquer pessoa. Acho isso muito legal, e é uma característica que tenho visto nos últimos anos no cinema feito no Ceará”.
Entre tantas comédias divertidas e produções que viajam festivais, fica a marca de um Estado cuja linguagem cinematográfica é moderna, contemporânea e ousada. “É muito bacana ver as várias gerações de artistas do Ceará colocando seu olhar diante do cinema”.
Por fim, enumera os projetos que engatará na sequência. Um deles é “Velhos Bandidos”, filme de Cláudio Torres com Fernanda Montenegro, Ary Fontoura, Tony Tornado e Nathalia Timberg; a continuação de “Na Minha Pele”, livro publicado em 2017; e um longa-metragem baiano em desenho animado, “Virando latas”. “Continuo minha relação com o cinema”.