De filmes locais a destaque internacional, como o Cine Ceará mudou o audiovisual do Estado

Com a proximidade da 31ª edição do Festival Ibero-americano de Cinema, adentramos a trajetória deste evento que testemunhou mudanças políticas, sociais e culturais profundas nos últimos 30 anos

Desde 1991, um festival de cinema escreve a história dos cearenses. Basta o tema de abertura ecoar na sala de projeção para adentrarmos o universo do Cine Ceará. E são muitas as memórias via luz do projetor. É o audiovisual enquanto testemunha das alterações sociais e culturais das últimas três décadas. 

A 31ª edição do Cine Ceará - Festival Ibero-americano de Cinema começa neste sábado (27). Para costurar a relevância do evento adentramos marcos fundamentais de sua trajetória. E o primeiro pilar acontece com a realização da então “Vídeo Mostra Fortaleza".  

O objetivo inicial da proposta era exibir e premiar filmes gravados no Centro da capital alencarina. 20 produções concorreram naquela ocasião. “Chegou para ficar”, profetizou o cineasta e professor Eusélio Oliveira (1933-1991) em março de 1991. 

Idealizador da mostra ao lado de Francis Vale (1945-2017), Eusélio Oliveira foi vítima, meses depois, de um bárbaro assassinato. Não pode conferir com os próprios olhos a longevidade da iniciativa. Porém, a semente já estava plantada para o futuro.  

Em 1995, o projeto ganha alcance nacional e o batismo efetivo de Cine Ceará. Com o novo milênio, atravessou continentes para adentrar filmes com histórias universais. O Estado entra no mapa da sétima arte internacional e o evento passa a ser ibero-americano em 2006.  

Narrativas locais

Nestes primeiros anos de festival, vários nomes do cinema e audiovisual do Ceará entregavam sua marca. Nomes como Roberta Marques, Joe Pimentel, Henrique Dídimo, Jackson Araújo, Jane Malaquias, Marcos Moura, Karin Aïnouz (vencedor da segunda edição com o curta "O Preso"), entre muitos outros.

O diretor cearense Glauber Filho ("Bate Coração") foi um dos realizadores presentes na Vídeo Mostra Fortaleza. Levou o prêmio de melhor filme com  "Fortaleza In de Gente". Destes primeiros trabalhos, o autor analisa as modificações que o mercado audiovisual do Ceará percorreu. 

"É perceptível a mudança no cenário do cinema e audiovisual cearense. Acredito que a realização dos festivais, o Vídeo Mostra Fortaleza e depois o Cine Ceará, foram o elemento pincipal para que as gestões públicas pudessem colocar em suas pautas a elaboração de políticas públicas para o setor".

Reconhecido também pela trajetória como professor de cinema, Glauber Filho adianta que a consistência ao longo dos anos de um festival como o Cine Ceará demarca um feito único no circuito exibidor. Incentiva novos cineastas, agrega ao turismo e à agenda cultural da cidade. Outro cenário perceptível reside na oferta de capacitação e comércio. 

É também esse lugar de janela, às vezes, o primeiro lugar de exibição para novos realizadores. "Foi muito importante para minha carreira, de estar ativo. Uma presença mais de guerrilha para que audiovisual cearense continuasse o seu desenvolvimento. Não só para aperfeiçoar, mas aprender com elas, aprender com as trocas. Nessa dimensão democrática de que importava o trabalho coletivo para chegarmos até esse momento", assevera Glauber Filho.

Tecnologias e cidade

Das primeiras edições com vídeos no formato VHS à recente realidade do streaming, o CIne Ceará percorreu diferentes demandas e contextos deste setor. Desde 1993 à frente da organização, o cineasta Wolney Oliveira reflete acerca da contribuição do festival à efervescência cultural que o Estado atravessa. 

A Casa Amarela Eusélio Oliveira tem contribuído neste sentido, aponta Wolney, tanto com estímulos como este festival de vídeo como com a formação e a qualificação de mão-de-obra, realizando cursos de produção em vídeo.

Hoje, você tem o curso superior de cinema da UFC e da Unifor que nos último dois anos tirou nota máxima. O curso sequencial da Vila das Artes, os cursos de cinema, animação e fotografia da Casa Amarela Eusélio Oliveira. Todas essas políticas públicas de audiovisual tem a ver com o festival. Sempre chegou junto e colaborou. Foi fundamental para consolidar o que existe hoje de fomento e formação no Ceará.

Segundo Wolney Oliveira, a 31ª edição simboliza um ano muito forte do cinema cearense. Armando Praça concorre com "Fortaleza Hotel". Petrus Cariry contempla o longa "A praia do fim do mundo" e o curta documentário "Foi um tempo de poesia". As exibições especiais de  "Pequenos guerreiros", de Bárbara Cariry; e "O Marinheiro das Montanhas", de Karim Aïnouz, reforçam o cenário.

Próximas décadas

Outras três produções em longa-metragem representam o Ceará. São elas  "De uma distância esquizoide" (Gabriel Silveira), "Minas Urbanas" (Natália Gondim) e "Transversais" (Émerson Maranhão). O histórico ao longo dos anos adentra essa característica enquanto vitrine da produção local.

Uma marca que aproxima diferentes artistas e modos de realizar cinema. O curta de animação "O Nordestino e o Toque da Lamparina" (1998), de Ítalo Maia, foi um destaque do evento. Em 2000, a programação de abertura do X Cine Ceará trouxe o filme "Eu Não Conhecia Tururu".

Exibido fora das mostras competitivas, a produção assinalou a estreia como diretora e roteirista da atriz Florinda Bulkan, após carreira internacional de reconhecido sucesso. Em 2010, o Cine Ceará mantinha a mostra de cinema itinerante, que levou para praças públicas de 15 municípios do interior cearense filmes de curta-metragem exibidos durante o festival. 

"Um dos principais desafios do futuro é continuar sobrevivendo em um país difícil culturalmente. Estamos num momento muito difícil, político e economicamente. Outra luta é se reinventar, o que fazemos há 30 anos. Inclusive, muita coisa do formato híbrido dessa parte virtual, acredito, continuará acontecendo quando voltarmos ao normal", descreve o diretor do festival.

Wolney Oliveira defende que a longevidade do Cine Ceará deve-se a uma soma de inúmeros esforços. Envolve a atenção das políticas públicas junto às secretarias de cultura, o apoio efetivo de empresas privadas cearenses e a presença da Universidade Federal do Ceará enquanto força de transformação social.

"Agora, o desafio principal é terminar a 31ª edição e começar a trabalhar o 32º que será realizado de 24 a 30 de setembro de 2022, assevera o gestor. "Ano de eleição e Copa do Mundo, o desafio é maior. Vamos em frente", finaliza.