Assassinatos cruéis, mentiras veladas, casas abandonadas. Sangue, silêncio, terror. O que poderia gerar repulsa e distanciamento, desperta fascínio e atração. O Brasil de 2022 parece adorar estes casos, vide a aderência do público a produções sobre crimes reais.
Nomes como o de Guilherme de Pádua, Margarida Bonetti e Elize Matsunaga saltam aos olhos, revelando a face perversa da humanidade. Mas, afinal, por que histórias de true crimes (expressão em inglês para referenciar o tema) atraem tanto nossa atenção? É natural gostar desses conteúdos? O que isso diz sobre nós?
A resposta está no íntimo. Somos curiosos por natureza. Logo, há interesse em saber o que aconteceu, com quem, quando e onde. “Além disso, os crimes reais contam com um fator a mais: aconteceram de verdade. Por isso, as pessoas tendem a se colocar, em geral, no lugar da vítima, e acompanhar o assunto pode funcionar como forma de prevenir que aconteça o mesmo com elas”, analisa Amanda Barroso de Lima, neuropsicóloga e psicóloga clínica.
Também mestra em Ciências Médicas e coordenadora do curso de Neuropsicologia Clínica Comportamental no Instituto Brasiliense de Análise do Comportamento (IBAC), a pesquisadora explica que, quando lemos ou assistimos a notícias assim, nosso organismo produz cortisol, hormônio do estresse, além de adrenalina, que nos prepara para lutar ou fugir.
Essas substâncias nos deixam em estado de alerta, ativos. Isoladamente, a produção de hormônios não justifica o fascínio pelo tema, porém. Há uma junção de fatores biológicos, comportamentais/emocionais e de história de vida da pessoa que precisam ser analisados em conjunto. Ou seja, feito tudo na vida, nada é preto no branco. É preciso olhar devagar.
Somos mórbidos?
Nossa fome de casos de natureza sombria – ainda que estejamos atravessados pela realidade tão desafiadora, a partir das consequências da pandemia de Covid-19 e dos entraves da economia, por exemplo – funciona também como fuga da realidade.
Conforme Amanda Barroso, tanto o cenário pandêmico quanto as questões econômicas são situações que não conseguimos resolver individualmente. Por serem problemas coletivos, exigem o esforço de cada um, além de decisões políticas. Por outro lado, o surgimento de casos criminais novos nos faz relembrar acontecimentos passados, convocando ao interesse.
“No caso da Daniella Perez, como faz muitos anos e as tecnologias mudaram bastante – na época em que aconteceu, não eram possíveis pesquisas como hoje – as pessoas acabam querendo buscar para entender melhor o que houve”, contextualiza, citando o crime ocorrido em 1992 envolvendo a atriz, filha da novelista Glória Perez.
Sendo assim, não é que sejamos mórbidos, mas curiosos. E olhar para esses casos reais nos quais seria possível acreditar que existe uma forma de prevenção nos dá a sensação de que podemos fazer algo – o que é diferente da realidade que estamos vivendo pela pandemia.
Há outro ponto que se impõe, tão urgente quanto. O fato de que se, por um lado, autores e autoras de crimes hediondos ganham a repulsa do público, por outro conquistam também sedução, a ponto de se tornarem celebridades. Professora do curso de Sistemas e Mídias Digitais da Universidade Federal do Ceará e pesquisadora do Laboratório da Relação Infância, Juventude e Mídia (LabGrim), Geórgia Cruz reflete sobre o assunto.
Segundo observa, tramas criminais, principalmente hediondas, despertam interesse por partirem de acontecimentos incomuns. Se voltarmos na História, veremos que figuras feito Jack, o estripador ganhavam notoriedade a partir do momento em que os jornais começavam a dar ampla cobertura aos crimes – divulgando detalhes e trazendo nas matérias uma espécie de quebra-cabeças, a ser montado com evidências policiais.
Nos casos em questão não é diferente. Produtos midiáticos jogarão luz nos crimes que fogem à regra de outros. E como são acontecimentos incomuns, com personagens específicos, os espectadores tentam suprir a curiosidade buscando mais informações. “Daí o que se tem, em contrapartida, é um fenômeno de produção de conteúdos e materiais suplementares que acabam enfocando ainda mais nesses assassinos e criminosos, sem levar em consideração aspectos éticos ou mesmo de relevância para comunicar mais sobre o assunto”, diz Geórgia.
Uma vez convivermos na chamada Sociedade do Espetáculo, somado ao acesso muito mais amplo a canais de mídia e redes sociais, o resultado será a projeção gigantesca alcançada por essas figuras, que, por sua vez, podem usar dos próprios meios para contar as versões. “Jornalisticamente falando, os limites éticos estão postos no código de ética da profissão, por exemplo – a questão de se ater aos fatos, o respeito com as pessoas envolvidas e o cuidado para que se conte uma história da maneira mais correta”.
E se a história for mal contada?
As consequências de uma narrativa mal contada podem ser várias. No Brasil, há casos como o da Escola Base, em 1994, cuja falta de checagem na apuração fez ir ao ar uma matéria baseada em mentiras, e que destruiu reputações. À época, os donos da escola foram acusados de molestar e praticar orgia com crianças, crime refutado.
Segundo Geórgia, “do ponto de vista legal, é possível ver, nos programas policiais, sujeitos tratados como criminosos, julgados no tribunal midiático que busca por audiência a qualquer custo. Há exemplos também de vítimas cujas identidades e intimidades são expostas. Isso traz grandes consequências para pessoas e famílias”.
Não à toa, encontrar o equilíbrio entre trazer a mensagem principal sem romantizar nem demonizar a história e os personagens é o grande desafio das tramas envolvendo true crimes. Especificamente sobre podcasts no segmento, o que a pesquisadora tem visto, na maioria das vezes, é um trabalho responsável e cuidadoso.
Entre eles, estão “Praia dos Ossos”, em que Branca Vianna narra a história do assassinato da socialite Ângela Diniz (1944-1976); e o Projeto Humanos - Caso Evandro, de Ivan Mizanzuk. O próprio podcast da vez – “A Mulher da Casa Abandonada”, da Folha de São Paulo, com autoria e apresentação do jornalista Chico Felitti – é visto por ela como uma produção com pesquisa ampla e conduta respeitosa diante da personagem principal.
“Nesse caso em específico, o que temos visto é que o modo como as audiências e outros veículos têm se apropriado da história é que tem sido problemático. Isso acaba direcionando os holofotes para as questões erradas. Não podemos deixar de lado outros elementos sociais”.
O fato de muitos estarem mais chocados com a precariedade com que a acusada vive e não debatendo questões graves – a exemplo do trabalho escravo existente na sociedade brasileira ainda em 2022 – nos mostra que há um caldo de cultura necessário de ser levado em conta nessa repercussão.
“Há também toda a espetacularização motivada pela lógica das redes sociais e o ‘hitar’ a qualquer custo, o que faz com que os produtores de conteúdos derivados do podcast não tenham tanto cuidado com as informações que são destacadas”, complementa. “Sobre o trabalho dos repórteres, é preciso estar atento para não culpar o mensageiro”.
Entre o bem e o mal
Por fim, nesse meio em que tudo é possível, podemos dizer que todo mundo é capaz de matar? A morte, enfim, se tornou banal? Para Amanda Barroso, o assunto é controverso. Imaginemos a seguinte situação: uma pessoa sem antecedentes criminais, considerada boa e carinhosa, presencia a morte do próprio filho. Você acha que ela seria capaz de liquidar o assassino? É possível que, em um momento de desespero, por questão mesmo de sobrevivência, haja algum tipo de impulso que possibilite a ela o ato fatal.
“Hormônios como a adrenalina e o cortisol estariam funcionando a todo vapor, aumentando a frequência cardíaca e enviando maior irrigação de sangue para os membros inferiores – a reação de luta ou fuga acontecendo. Então, não temos como afirmar que todo mundo é capaz de matar, mas eu diria que a gente vive torcendo para nunca estar em uma situação que possa favorecer isso”.
No mesmo espectro sobre a morte, a psicóloga não considera que ela tenha se tornado banal. Ainda há um medo extremo, por parte da maioria das pessoas, de morrer. Esse sentimento, inclusive, acaba nos deixando curiosos para entender casos reais na tentativa de evitar que ocorram com a gente.
“A morte ainda é um tabu. Embora seja a única certeza que temos na vida, ninguém se prepara pra isso, e vive como se não existisse. A vida é tão importante que somos, justamente, ameaçados de morte quando querem que façamos algo. Por conta disso, não acho que seja banal”, sentencia.
Também é complicado falar sobre a divisão do mundo entre bem e mal. Essas dicotomias, na verdade, são prejudiciais, pois dão a ideia de tudo ou nada. Não há flexibilização. Pessoas sempre acham que temos que estar sempre bem ou sempre mal. Isso gera problemas sob a ótica da saúde mental, e vivemos momentos de intolerância ao mal-estar – muitas vezes necessário para que consigamos “sair” de um problema – e uma hipervalorização do bem-estar, com redes sociais lotadas de pessoas tristes, mas com fotos felizes.
“O resultado é a busca por um ideal que não existe, levando pessoas a se sentirem tristes olhando a grama verde do vizinho. Os crimes reais acabam mostrando pessoas reais, com sentimentos reais, que pareciam ‘boas’, mas mostraram um lado ruim, justamente derrubando essa ideia de bem ou mal”.