Cultura e pandemia: cearenses partilham lembranças e hábitos de fruição em ano atípico

Arte se fez presente do isolamento total a experiências tímidas com a flexibilização de decretos

Você lembra qual foi o último show presencial que assistiu antes da Covid-19 impôr o distanciamento social no Ceará? Desde 15 de março de 2020, quando os três primeiros casos de pessoas infectadas foram confirmados por aqui, ficaram para trás as aglomerações conscientes, como os eventos culturais para o grande público. Um ano depois, pouca coisa mudou, e os cearenses passaram a se confortar em lembranças e hábitos de fruição atualizados.

“O último show que fui foi o I'music, especificamente no dia em que se apresentaram Zé Ramalho, Alceu Valença e Skank. Lembro que eu estava muito animada, pois nunca tinha ido a um show do Zé Ramalho, além de prestigiar mais uma vez as outras atrações. A noite foi muito especial, porque compartilhei esse momento com pessoas queridas”, recorda a professora de Língua Portuguesa e Literatura, Elayne Castro Correia, 30 anos. 

Quem também estava lá naquele 2 de fevereiro era a universitária Maryana Fonseca Teixeira, 23 anos. “Até hoje eu penso que foi muito bom poder ter ido, porque foi a última oportunidade de curtir um evento daqueles, com muita gente reunida”, reconhece.

Ainda no carnaval do ano passado, três dias antes da confirmação do primeiro caso de coronavírus no Brasil, o analista de cultura Daniel Filipe de Souza Santos, 28 anos, prestigiou o baiano Gilberto Gil na areia da Praia de Iracema. “Lembro que foi um carnaval meio estranho, porque ainda estavam rolando os problemas com a greve da polícia, mas ir ao show deu uma sensação de experimentar a cidade mesmo assim e ficar feliz por ver um ídolo ao vivo”, destaca.

Hábitos culturais em números

Antes da pandemia, Daniel também tinha o hábito quase semanal de assistir a filmes nas salas de cinema de Fortaleza. Ele está em diálogo, portanto, com os 30% de brasileiros que, em entrevista a pesquisa “Hábitos Culturais – Expectativa de Reabertura e Comportamento Digital”, realizada pelo Itaú Cultural, em parceria com o Datafolha, em 2020, declararam sentir mais falta dessa atividade durante o período de fechamento dos espaços culturais e de entretenimento. Os shows musicais vêm logo após, com 24% das menções.

Não por acaso, as duas práticas são também as que mais devem ser priorizadas com a reabertura total, conforme dados da mesma pesquisa. “Sinto mais falta da experiência sensitiva mesmo. De ir a algum lugar cultural, de ver, escutar e sentir gente também apreciando, comentando e discutindo peças, quadros e livros; de escutar e se emocionar com as pessoas cantando e encenando”, partilha a professora Elayne.

Para Daniel, a experiência de sair de casa e compartilhar momentos com os outros não consegue ser suprida pela Internet. “Não tem o que substitua um público de show, o riso coletivo de uma sala de cinema, o aplauso do teatro. A sensação de estar junto, dividindo o espaço com o artista e com a obra é algo que faz muita falta”, declara.

Por outro lado, de acordo com a pesquisa do Itaú Cultural, as atividades no ambiente on-line - entre as quais, ouvir música, assistir filmes e séries e shows se destacam - devem permanecer como hábito dos brasileiros, apesar dos ensaios de reabertura.

A maneira como se deu o consumo cultural em 2020 ajuda a justificar essa tendência. O publicitário Levir Melo Ferreira, 24 anos, por exemplo, apoiou algumas lives de locais que frequentava, como o thelights bar, ou apresentações individuais de artistas independentes de Fortaleza. Daniel contribuiu com mostras de cinema virtual, comprando ingressos para assistir produções como a cearense “Pacarrete”; e Elayne adquiriu livros de pequenas editoras.

“Acabou sendo um tempo de descoberta de muita coisa boa, no que diz respeito à arte”, partilha a universitária Maryanna sobre a fruição virtual, que lhe permitiu acompanhar o trabalhos como o do artista Jandê, de Massapê, no interior cearense.

Vivências na flexibilização

Com a aparente trégua da pandemia, no segundo semestre do ano passado, alguns equipamentos culturais até reabriram, seguindo algumas restrições. Naquele momento, ficaram evidentes algumas escolhas do público cearense com a flexibilização, em geral pautadas pela segurança dos protocolos ou ainda pela opção de horários alternativos.

“Fui ao Museu da Indústria, à Caixa Cultural, ao Theatro José de Alencar, ao Museu da Fotografia e ao Espaço Cultural da Unifor. Eu já conhecia todos esses antes da pandemia, com exceção do Museu da Indústria. Optei por esses equipamentos por gostar muito dos ambientes e, além disso, por observar que todos estavam cumprindo os protocolos sanitários”, observa Maryana. “Foi muito bom poder retornar a esses lugares e conhecer novos, deu uma sensação boa de esperança no retorno ao normal”.

 

Levir Melo, por sua vez, atribui uma visita ao Museu da Fotografia como a mais memorável. “Foi bem acolhedor e aconchegante. Há um tempo que queria visitar o museu e aproveitei um sábado que estava almoçando lá perto para ir com meu namorado. Estava bem vazio, porém com obras bem bacanas”, conta.

Elayne e Daniel não se sentiram à vontade para experimentar, mesmo quando as taxas de infecção e óbito estavam controladas.“É uma nova realidade, vem uma tensão apesar de todos os cuidados. Estou com muita vontade de ir a todos os lugares que ia, mas ainda não me senti seguro para isso. Acho que o momento é de grandes cuidados, o que afeta com certeza o setor cultural, mas nesse momento não sei como poderia ser diferente”, afirma o analista de cultura.

Arte como fundamento

Entre estes cearenses, porém, há um consenso: a fruição artística ocupa um lugar fundamental. “É difícil mensurar qual o papel da arte na minha vida. Ela entrecruza minhas vivências desde o âmbito íntimo ao profissional. Posso dizer que não vivo sem, e creio que todos deveriam ter esse direito assegurado”, observa a professora Elayne Castro.

Maryana também atribui à arte um significado que vai além do lazer e do entretenimento.

“Ela cumpre, na minha vida, um papel social de tomada de consciência, de acesso a ideias, de aquisição de conhecimento, que colaboram continuamente para formação da minha visão de mundo”, reconhece a universitária.

Para Levir, é ainda um meio de desopilar da pressão imposta pelo capitalismo ou até mesmo de repensar a vida e a como levamos. “É de uma forma geral: reflexão e afeto”, crê.

Por isso mesmo, Daniel acredita que ela permanecerá, como vem permanecendo há séculos, não importa o contexto. “É humano, é parte de mim e de todos, mesmo que alguns tentem rechaçar”, finaliza.