É pela lábia, pelo charme e pela necessidade de ser desenrolada que a jovem protagonista da comédia cearense “Greice” — dirigida pelo cineasta Leonardo Mouramateus — desliza pela vida. Com Amandyra, Dipas e Faela Maya no elenco, a coprodução Brasil-Portugal estreia nesta quinta (18) nos cinemas.
Com ritmo e humor ágeis, o longa segue as desventuras de Greice (Amandyra), uma fortalezense que estuda Belas Artes em Lisboa e se envolve em um incidente que ameaça a permanência dela em Portugal. Para tentar resolver o problema, retorna à cidade natal escondida da mãe e se vê envolta em uma sucessão de confusões.
Protagonista arteira e artista
"É uma personagem que não existe só nesse filme, mas no cinema brasileiro, fora do Brasil, na literatura, está viva. Todo mundo conhece alguma Greice perto de si, isso se não for a própria Greice”, atesta ao Verso o cearense Leonardo Mouramateus em entrevista por telefone.
Aumentando ou diminuindo um “ponto” em cada “conto” que compartilha, conforme a conveniência, a protagonista ora é descrita como alguém que “desde pequena se aproveita de todo mundo” — como reclama a prima Márcia (Bruna Pessoa) —, ora como “amiga das circunstâncias” — como resume a cantora Cléa (Isabél Zuaa), para quem Greice trabalha.
“Foi uma mistura do que vejo na vida, nas minhas tias e algumas primas que, quando eu era criança, contavam histórias de maneira inventiva. A coisa da lábia me interessa, sempre me interessou o território da fabulação, da imaginação e do quanto isso atravessa nossa vida”
Além de compor a equipe da cantora e de fazer bicos num café, Greice é, como lembra Leonardo, uma artista. “Aquilo que ela faz de maneira mais habitual e presente é trabalhar materialmente com a própria vida, inventar a narrativa dela consoante à circunstância que acontece”, aponta.
É por isso que o diretor defende que, mais do que sobre moralidade, o modo de vida de Greice diz sobre liberdade.
“Esse talento específico para modificar e moldar a própria vida é algo que não vejo só na chave da verdade e da mentira. As pessoas se reconhecem no quanto você tem que se desenrolar para conseguir o que quer”, elabora.
“O que a Greice quer não é exatamente dinheiro. Ela está atrás de viver, de liberdade, de sentir prazer. Isso define a personagem mais do que a verdade ou a mentira”, segue.
Em tempos em que há quem cobre que obras, personagens e criadores sejam exemplos de conduta, o cineasta refuta entendimentos limitadores: “Em qualquer definição do que a arte tem que ou pode fazer, ela sempre vai ter alguma coisa que vai escapar”.
“O modo como hoje em dia, de maneira muito comum e usual, pessoas extremamente inteligentes, inclusive o próprio presidente, falam sobre como a arte precisa ‘educar’ as pessoas me parece não só algo inibidor de tudo que ela pode ser, quanto algo perigoso”
“Eu não faria o que faço se estivesse habitando o território da moralidade que diariamente certas pessoas impõem. Não seria a pessoa que sou, não seria diretor de cinema, não estaria envolvido com arte”, aponta.
Fragmentos reais ficcionalizados
O incidente que afeta Greice acontece no prédio da faculdade de Belas Artes durante uma das famosas festas do curso e envolve Afonso (Mauro Soares), rico jovem português com quem ela se envolve.
Como é comum na obra de Leonardo, a obra se inspira em pedaços de experiências reais que o diretor agrupa de maneira ficcional. Ele próprio estudou no local e frequentou eventos do tipo, por exemplo.
"Uma festa jovem, caótica, num espaço clássico, com estátuas e uma espécie de ordem das belas artes, da alta cultura, me interessou como contraste. Assim como o próprio contraste de um corpo brasileiro, negro, na cidade de Lisboa, num país como Portugal"
Apesar de diferentes ligações com a própria trajetória, o diretor não credita o movimento como "autobiográfico".
“São vivências, sejam minhas ou que testemunho, ouço, imagino. A ficção é justamente as linhas que se constroem entre elementos concretos, as relações que se estabelecem entre elementos que não necessariamente têm relação”, define.
Fortaleza em cena
Apesar de ser um filme de trânsitos, “Greice” traz muitos pontos de identificação fortalezense, que vão de uma fala sobre como “Fortaleza é um ovo” à outra que diz que “quem mora na Regional 11 não malha na Regional 2”.
“Como qualquer fortalezense, eu tinha minha relação de amor e conflito com esse espaço, o que é uma coisa muito comum na juventude de Fortaleza”, reconhece. No retorno à cidade natal, por exemplo, Greice precisa lidar com “questões da própria cidade que deixou e das relações que ainda tinha e tem”.
“Me interessava o modo como ela, de cabeça muito dura, vai sendo amaciada cada vez mais pela cidade e pela experiência de estar aqui. Queria fazer um filme em que, à medida que ela encontrasse as pessoas, ela pacificasse a relação com a cidade. Não de idílio, mas de possibilidade de vislumbrar algo que ela sequer tinha imaginado”
O núcleo de Fortaleza inclui Enrique (Dipas) e Eliete (Faela Maya), que trabalham no hotel onde Greice se esconde da família. Na ideia original do roteiro, ele teria envolvimento com forró, mas a escalação de Dipas para o papel modificou o plano.
"Minha formação é em Ciências Sociais, sou mestrando em Antropologia e minha pesquisa é em torno da prática cultural da swingueira. O Léo sabia e achou legal ter a swingueira, mostrar um recorte que não seja necessariamente voltado para o forró", explica o ator em entrevista ao Verso.
Novo olhar à comédia no Ceará
Além dessa dança, outros aspectos bastante cearenses se fazem presentes em "Greice", como o humor. A presença da comediante Faela Maya, inclusive, é chave nesse sentido. "Sem dúvida, ela não só contribui para o filme, mas acho que também influencia de alguma maneira no tom", atesta Leonardo.
"Sempre foi um objetivo participar de um filme de cinema, desde antes de gravar vídeos na internet", partilha Faela, destaque pelos conteúdos nas redes sociais. "Me vejo participando de outras produções, se houver convites, e também até mesmo um filme meu, quem sabe", torce.
Eliete trabalha como recepcionista e é descrita pela atriz como uma mulher vivida e atenta. "Ela sabe da vida de todos que ali passam, está sempre atenta, sabe como tudo funciona. Eu diria que ela era capaz até de desmascarar a Greice", se diverte.
Um dos pontos altos do longa é o discurso da personagem sobre se iludir no amor. “Coisa que toda gente iludida tem que fazer é se lascar, quebrar a cara até a cara de verdade aparecer por debaixo”, afirma.
"Esse trecho teve boa repercussão nas redes sociais e isso mostra que o filme tem muitas possibilidades de ter boa visibilidade no cinema", antevê Faela. "Não deixa de ser o humor cearense, mas lança um novo olhar sobre como fazer comédia no Ceará", considera a atriz.
"O Léo tem essa característica de um roteiro bem inteligente, bem cirúrgico. No meio de todas as histórias, ele consegue trazer o humor como a gente fala. É muito sagaz. Nosso receio era de que as pessoas inclusive não captassem, porque tem muita piada muito cearense, mas elas captaram", dialoga Dipas.
Diálogos com públicos amplos
Antes de chegar às salas nesta quinta, o filme estreou no Festival de Roterdã em janeiro deste ano, Em junho, foi premiado no IndieLisboa e, no festival Olhar de Cinema, em Curitiba, venceu os prêmios de Melhor Filme, Roteiro e Atuação, para Amandyra.
“‘Greice’ é um filme muito divertido, interessante, mas a gente ficou com um pouco de pé atrás, ‘será que o público vai comprar essa ideia?’. Para a nossa surpresa, as pessoas adoraram e compraram”, afirma Dipas ao lembrar da exibição no Paraná.
“É um filme de arte, mas não chatão. É divertido, leve, inteligente, mas também não é mainstream tipo Marvel e Netflix. Está no meio do caminho e por isso mesmo tem surpreendido positivamente a receptividade da galera às piadas e à leveza com que o filme trata situações complexas”, segue o ator.
O gênero da comédia não chega a ser novidade para Leonardo, sendo elaborado em diferentes filmes dele. O contato se deu, inicialmente, por gosto pessoal por obras de nomes como Ernst Lubistch, Jean Renoir, Jacques Rivette e Monta Bell.
“Existe nesses filmes uma espécie de liberdade narrativa onde não há um único disparador, personagens coadjuvantes têm poesia e relevância, o que constrói a atmosfera e a experiência”, aponta o cineasta.
Em relação aos longas anteriores dele, quase sempre independentes, “Greice” foi o de maior orçamento, surgido a partir de convite da produtora Glaz Entretenimento. Apesar de buscar um nível distinto de diálogo com o público, a produção segue os interesses de linguagem e invenção do cineasta.
“A comédia sempre me pareceu um lugar de liberdade não só porque me interessa denunciar as questões e dores do mundo, mas sobretudo porque é um lugar de experimento. Faço filmes narrativos, sem dúvida, mas eles são também constantemente experimentais”
"Se a gente não tivesse feito ‘António Um Dois Três’ (longa de estreia do diretor, de 2017), ‘A Vida São Dois Dia’ (longa de 2023 que estreou na Mostra de Tiradentes), a gente não conseguiria ter feito que ‘Greice’ funcionasse. Existe uma espécie de tom, ritmo, uma ‘rapidezinha’ que é muito da comédia romântica, mas sobretudo de uma pesquisa", define.
Greice
- Quando: sessões na quinta, 18, às 19h40; sexta, 19, e sábado, 20, às 19h50; domingo, 21, às 17h50; terça, 23, às 19h50; quarta, 24, às 18 horas
- Onde: Cinema do Dragão (rua Dragão do Mar, 81, Praia de Iracema)
- Quanto: R$ 16 (inteira) e R$ 8 (meia)
- Mais informações: @cinemadodragao