Clarice Lispector (1920-1977) deixou ela mesma como legado, e isso parece suficiente para justificar a tamanha relevância que a escritora possui na literatura mundial. Com uma capacidade singular de percepção do lado mais complexo do ser humano – atravessando as dores e alegrias, vertigens e encantamentos do estar-se vivo – ela cravou o próprio nome não apenas no Olimpo das letras, mas nas coisas mais simples, nos mais acanhados corações e realidades. Clarice tem essa relação metonímica com o mundo.
Ana Miranda buscou compreender os tantos atravessamentos oferecidos por Lispector desde a adolescência, quando se viu diante de “Perto do coração selvagem”. Recorda da sensação. “Foi uma das primeiras leituras que me perturbaram pela incapacidade de compreender o que era aquilo. Estava muito distante da minha habilidade de entendimento e talvez isso tenha criado uma relação de grande curiosidade, um enorme interesse em compreendê-la. A Clarice sempre atraiu os leitores pelo mistério que ela representava”, considera a romancista cearense.
Anos mais tarde desse primeiro contato, após longos desbravamentos por aquela enigmática persona, lançou “Clarice” (Companhia das Letras, 1999), novela em que recria a prestigiada autora como personagem. Um trabalho, segundo ela, fruto da consciência de que Lispector – grande aniversariante desta quinta-feira (10), quando se celebra o centenário de nascimento da literata – é uma verdade que só existe na ficção.
“Ela é um ser quase ficcional, é quase literatura pura – a sua alma, o seu modo de ser. O processo de composição da novela foi, digamos assim, uma relação entre duas amigas. Li toda a obra dela, reli vários dos livros, e tentei me relacionar diretamente com Clarice sem ter interferência de nenhuma interpretação, até porque há muitas, diferentes”, explica. “Foi um contato muito próximo, muito puro, entre nós duas. E eu sentia muito a presença dela, como se fosse um fantasma, um anjo de asas muito possante. A Clarice é um ser que tem asas”.
Construção
O livro assinado por Ana aborda apenas um momento, em que Clarice, numa noite de insônia, fuma no terraço do prédio onde morava, no bairro do Leme (RJ). Ao terminar o cigarro, ela joga a ponta dele do alto do edifício e, enquanto esse fragmento desce até o chão, a narrativa da novela transcorre, entremeando reflexões da personagem e da autora que conduz a trama.
Com todo o relacionamento criado a partir da escrita de Clarice, Ana foi cultivando as ideias do livro e de cada uma das cenas, construindo uma história muito parecida com as contadas pela homenageada. Tramas em que, geralmente, elementos como o começo, o meio e o fim são turvos, descontínuos. “Ela sempre trabalhou com muita liberdade, e eu fiz uma estruturação nesse trabalho que é assim também”, dimensiona a cearense.
De acordo com a literata, essa autonomia criativa da aniversariante para passear por diferentes gêneros literários, imprimindo inovação e originalidade, acabou sendo seu expediente também. Deu-lhe coragem para arriscar. Desta feita, a novela não é propriamente uma apresentação de Clarice, mas, sobretudo, um relato ficcional do que pode ocorrer quando nos relacionamos com a autora.
“Uma das influências mais importantes da Clarice foi que ela talvez tenha sido a escritora mais reflexiva, mais filosófica de nossa literatura. Ela é quase o tempo todo abstrata. E a literatura brasileira é muito telúrica. O Brasil tem muita floresta, rua, realidade, beleza natural, então as nossas letras vão caindo assim no mundo. A Clarice tem uma literatura que tem uma alma ucraniana, russa, aquela alma dos países que têm neve, uma coisa mais interiorizada. Você se volta para dentro de você mesma, não pode sair de casa porque está muito frio, então começa a girar em torno da sua própria mente, do âmago da alma humana. Ela tem bastante isso”, percebe.
Não sem motivo, Lispector abriu uma vertente para que outros representante da palavra pudessem caminhar por estradas em que predominam o subjetivo, o desconhecido, um fazer que incomoda e seduz. “Foi uma revolucionária e uma profeta, preludiando muitas coisas da alma das mulheres”.
Percepções
Preparado exatamente com o intuito de festejar a efeméride do centenário, o livro “Visões de Clarice Lispector - Ensaios, Entrevistas, Leituras” é outra valiosa contribuição para esmiuçar aspectos da escrita clariceana. Organizada pelos pesquisadores cearenses Fernanda Coutinho e Sávio Alencar, a obra foi publicada pela Imprensa Universitária da UFC em julho deste ano e está disponível gratuitamente no Repositório Institucional da universidade.
Nela, 24 estudiosos da autora, tanto do Ceará quanto de outros estados, discorrem sobre uma diversidade de temáticas. Todo o conteúdo é organizado em três eixos, como o subtítulo assinala: ensaios, entrevistas e leituras.
“Vemos, em muitas ocasiões, o Brasil de outrora e o de agora no passar das páginas das obras de Clarice, o que marca nossa resistência a um convívio harmônico com a alteridade. O nosso País de desrespeito ao outro está narrado em seus romances, contos e crônicas”, analisa Fernanda Coutinho a respeito de um fator preponderante do fazer de Lispector.
“O livro acredita na diversidade de leituras: as mais isentas, com olhar mais agudo face à construção textual, e outras em que o ‘eu’ dos leitores deixa transparecer o efeito de comoção que as palavras de Clarice lhe causa – uma leitura, portanto, regida, antes de tudo, pela sensibilidade”.
Da parte de Sávio Alencar, fica o juízo de que Clarice era devota de sua profissão. “Escrever, se era uma maldição (como chegou a dizer), também era uma missão. Há uma crônica famosa em que ela afirma ter nascido para escrever e para cuidar dos filhos. Essa inflexão, de quem aposta na palavra, certamente fez da sua obra o que ela é. Seus diferenciais são muitos, a lista é longa”, diz.
Entre eles, o pesquisador destaca o fato de a estreia dela na literatura ser com “Perto do coração selvagem”, em 1943 – obra que redefiniu os caminhos de nossa prosa moderna e deixou indelével o fator Clarice no sistema literário nacional. “‘A hora da estrela’, sua novela/romance, foi o livro que mais reli, Macabéa é essa personagem que nos agarra e não solta mais. Mas descobri Clarice com a ‘A descoberta do mundo’, o livro a que sentimentalmente estou mais relacionado”.
Trocas
Das experiências individuais às apreciações coletivas. Em fevereiro de 2019, surgia em Fortaleza “Se eu Clarice…”, clube de leitura dedicado a celebrar a herança literária de Lispector por meio da troca de ideias. À frente da iniciativa, está a psicoterapeuta e mediadora de leitura Nara Barreto. Ela conta que a formação do grupo se deu pelo desejo de melhor aprofundar a experiência de ler as obras da escritora.
“É o tipo de coisa que é difícil vivenciar sozinha porque surge uma urgência absurda de dividir os pensamentos e sentimentos com alguém. Como sempre acreditei na incrível potência das leituras compartilhadas, a ideia do grupo surgiu muito naturalmente”, explica.
Inicialmente acontecendo numa cafeteria local, as reuniões do clube passaram a ocorrer na Galeria Mariana Furlani a partir do início deste ano. Nessa época, Nara ainda ganhou outro reforço: a presença de Alice Frota para mediar os encontros do grupo que, atualmente, devido à pandemia de Covid-19, acontecem no formato virtual (link em: @dropsdeleitura), congregando até 15 pessoas nos últimos sábados de cada mês.
“O horário e o dia dependem das nossas agendas. Fica difícil manter um padrão nesses tempos de pandemia, mas tentamos nos encontrar todo mês. Tem dado certo! O grupo é bem assíduo, já ganhou cara própria”, percebe Nara. “Nós já passeamos por vários títulos, tais como ‘A hora da Estrela’, ‘A paixão segundo G.H.’, ‘Perto do coração selvagem’, ‘Água Viva’, ‘A via crucis do corpo’, ‘Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres’, e fizemos um percurso conto a conto do livro ‘Laços de Família’ durante o primeiro semestre de 2020”.
A proposta das reuniões não é de análise técnica nem teórica, mas oferecer um espaço para a troca da experiência afetiva de leitura. “Clarice é uma autora que nos desafia a sentir. E esse é o nosso objetivo: explorar as múltiplas possibilidades do sentir”, comenta Nara. Não à toa, em cada encontro há muitas inquietações, resultado das diferentes formas de ver o mundo de cada integrante. É, assim, um espaço de acolhimento e amor.
“Ela traz em cada livro um estranhamento que nos cativa. Parece estar sempre vendo o mundo e a si mesma pela primeira vez. Esse espanto diante do cotidiano e da beleza assustadora da vida em movimento são aspectos que invariavelmente aparecem durante as nossas trocas”, situa a mediadora de leitura.
Avalanche
Detalhando pontos da própria travessia de contato com a estética clariceana, Nara ainda comenta que passou muitos anos da juventude rejeitando a obra de Lispector, justamente porque achava ser “mainstream demais”. Casualmente, já perto dos 30 anos, foi tomada por uma “avalanche arrasadora”, conforme descreve, ao se deparar com o romance “A paixão segundo G.H.”.
“Por acaso (ou não), minha mãe estava lendo e deixou comigo por engano. Comecei a ler como quem folheia uma revista. Me senti despida. Atravessada por lanças dolorosas de reconhecimento, que faziam de mim a solitária mais acolhida do mundo. Eu estava ali, diante de mim mesma, como nunca antes. Foi uma experiência surreal. Quis saber até onde poderia ir nessa experiência. Estou nisso até hoje”.
Para ela, existe um motivo bastante claro para celebrarmos com tanto vigor o centenário de Clarice: suas histórias propõem o desafio de olhar o mundo de uma maneira fora do comum, com olhos límpidos e o coração aberto para o espanto. “É preciso muita valentia para desbravar as próprias sombras e lançar luz aos caminhos dos outros. Clarice oferece a própria alma aberta para seus leitores e nos diz: ‘Aprende de mim que tive que ficar toda exposta’. Sigo aprendendo. Sigo profundamente grata”.
E se tivesse que direcionar uma mensagem a escritora neste centenário, Nara assim o faz: “Minha amiga, você disse uma vez que continuar escrevendo não faria diferença alguma. Quero te dizer algo que eu sei que você vai aceitar com a naturalidade de um espanto inocente: você transforma tudo o que toca. Tantas e tantas vidas foram atravessadas por tuas palavras. Tantos destinos foram alterados. Tantas pessoas voltaram a fazer algo que há muito não conseguiam: sentir. Clarice, isso é a eternidade que tanto almejam. Tua vida segue nos passos de todos nós que crescemos contigo. Eis a descoberta do mundo: nós existimos!”.