Cearense cria espumante de caju: do pé em Aracoiaba para as mesas de restaurantes finos em São Paulo

Criada por Vicente Monteiro, com produtos da agricultura familiar, Cauina leva o aroma do caju para um patamar de sofisticação

O Ceará é o maior produtor de caju do País. A produção notável e a versatilidade do insumo resultam, também, em criatividade à mesa. O empresário Vicente Monteiro, 43, resolveu levar o pseudofruto do cajueiro a outro patamar. Para ele, já era hora de encarar o caju como um produto refinado, que se fizesse presente também em ocasiões sofisticadas, apesar de sua abundância na gastronomia do dia a dia. A partir da experiência que tinha com a produção de cervejas e dos estudos sobre o cauim, bebida indígena, criou a Cauina, bebida tipo espumante que tem como base o frescor do caju.

Vicente se inspirou na tradição ritualística dos povos originários e na cajuína de Rodolfo Teófilo e, a partir do método Champenoise, elaborou a bebida que traz a delicadeza do espumante, a valorização da cultura alimentar tradicional e um toque contemporâneo, “genuinamente cearense, mas sem recorrer a um regionalismo estereotipado”, ressalta.

“Queria produzir uma bebida de terroir (de território) cearense, muito boa, muito bem apresentada. Que representasse o Ceará com beleza e que mostrasse que, usando a técnica correta, é possível transformar a fruta em uma bebida de alto valor sensorial”
Vicente Monteiro
Criador do espumante de caju

Feita com insumos orgânicos, veganos e oriundos da agricultura familiar, a Cauina é uma bebida fermentada preparada com suco de caju clarificado, cajuína e leveduras. A ideia para o espumante surgiu de uma pesquisa realizada por Vicente no Laboratório de Criação da Escola de Gastronomia Social Ivens Dias Branco em 2019. O estudo inaugurou uma fase em sua trajetória como produtor de bebidas: após anos fazendo cervejas artesanais, decidiu que queria priorizar insumos da cultura alimentar cearense para criar uma nova bebida.

“Na época, eu buscava apresentar um produto com leveduras nativas da caatinga, que pudesse ser utilizado na produção de alimentos”, conta. A partir da pesquisa, Vicente criou receitas para demonstrar a nova técnica de fermentação. Fez alguns pães, uma cerveja e uma bebida que não se encaixava em nenhuma categoria – um protótipo do que seria a Cauina. “Produzi em dois, três dias, sem respeitar nenhuma técnica. Na festa de encerramento (do laboratório), coloquei a bebida para degustação e ela acabou em dez minutos. Fiquei sem entender”, brinca Vicente. “Daí, comecei a estudar a cajucultura”.

Entre as descobertas do pesquisador autodidata estava o fato de que o pedúnculo do caju é muito sensível e, por ser perecível e comum, costuma passar despercebido no mercado. “O caldo (do caju) não tem a mesma atenção que a castanha, mas ele tem uma história milenar. Fiquei super empolgado e comecei a estudar como eram feitas as bebidas originárias. Descobri, então, que os povos originários faziam uma bebida de caju (o cauim), como parte de um ritual, que era parte estruturante da sociabilidade desses povos”, conta.

Produto da agricultura familiar 

Atualmente, parte da produção da Cauina é feita pela família de Silvanar Soares, um pequeno agricultor de Aracoiaba, no Maciço de Baturité. As 15 pessoas envolvidas no processo já produzem o suco de caju e uma cajuína própria, no modelo adequado para a finalização do produto na Capital, numa produção que abastece a Alquimista da Caatinga, empresa criada por Vicente a partir da receita do espumante, durante um ano inteiro. Em 2022, três mil litros da bebida foram produzidos. Para este ano, a projeção é de quatro mil litros fabricados e comercializados.

Dos cajueiros de seu Silvanar, a bebida tem ganhado o País. Hoje, 80% da produção da Cauina é comercializada em São Paulo, boa parte dela em restaurantes prestigiados, como Maní e Cora. Por isso, o objetivo de Vicente para os próximos anos é desenvolver a parte comercial da empresa nos estados nordestinos. “É importante para mim que as pessoas o Ceará e do Nordeste saibam desse produto, possam experimentá-lo, dar de presente”, pontua.

Se não tem uva, é vinho?

Apesar de ser conhecida como espumante de caju, a Cauina não é considerada um vinho pela Legislação Brasileira Sobre Bebidas. Isso porque, de acordo com a normativa, só pode ser considerada um vinho a bebida “obtida pela fermentação alcoólica do mosto simples de uva sã, fresca e madura”, ou seja, bebidas fermentadas feitas a partir de outras matérias-primas não podem utilizar a nomenclatura. 

Vicente explica que essa é uma medida de proteção do mercado para proteger o consumidor e as empresas fabricantes de vinhos.  Porém, o diretor da Alquimista da Caatinga afirma que a fermentação de outras frutas em bebidas alcoólicas é uma tendência não só no Brasil, mas no mundo inteiro, e decorre da atenção às mudanças climáticas e da valorização dos produtos nacionais. 

“É uma tendência econômica, mas também ambiental – afinal de contas, quando você tem uma produção que você não precisa trazer um ingrediente da Inglaterra, por exemplo, isso tem uma menor produção de carbono, né? Essas questões de logística também são importantes”, conclui.

O tanino do tinto com o frescor do caju

A bebida foi pensada para momentos especiais, mas também ganhou destaque em um espaço onde o objetivo é outro: democratizar o consumo do vinho e mostrar que não é preciso ser especialista ou beber em taças de cristal para apreciar uma boa bebida. Essa é a proposta da Levin, loja itinerante idealizada pelo sommelier e juiz de vinhos Ramon Maia, 32, que tem a Cauina como carro-chefe de vendas. 

Inaugurada em novembro de 2022, a marca funciona a partir de uma curadoria de vinhos brasileiros que prioriza rótulos exclusivos no Ceará e produtos oriundos de vinícolas pequenas e familiares. Segundo Ramon, a ideia de abrir a loja surgiu após a pandemia, quando ele perdeu o emprego e buscava um meio de obter renda. Como os amigos sempre lhe pediam indicações de rótulos e lugares para comprar vinhos, viu ali uma oportunidade de negócio – e a chance de dar uma nova cara ao mercado de vinhos cearense. 

“Resolvi focar num público mais jovem, com uma cara mais colorida, uma coisa mais descomplicada, tentando tirar um pouco daquela coisa séria do vinho. Até o nome é uma brincadeira: levin de ‘leve’ e de le vin, que é ‘o vinho’ em francês”, conta.

Como parte da estratégia de vendas, a marca resolveu investir na participação de feiras, onde os clientes podem, além de comprar rótulos diferentes, experimentar vinhos em lata, em caixa ou comprar copos para provar diferentes sabores. Atualmente, a marca comercializa cerca de 60 rótulos, mas a Cauina é o produto que mais chama atenção dos clientes. “Ela traz muito a regionalidade, essa coisa mais cearense, é uma bebida que traz muitas sensações diferentes”, destaca Ramon. 

Apesar de não considerar a bebida fermentada um vinho, por não ser feita a partir da uva, o sommelier explica que há algumas similaridades. “O caju tem o travoso do tanino, que também existe no vinho tinto. A Cauina traz o aroma adocicado da cajuína, o aroma fresco do caju e outros aromas relacionados a fermentações, como o de pão, de levedura, um pouco de caramelo. É uma sensação muito boa, muito diferente”, afirma.