O movimento começa cedo. Poucas horas da manhã já com gente encostada na grade. Perguntam se tem pão, banana, colorau. Perguntam, mas já sabem a resposta: é claro que tem. Difícil acontecer o contrário. Faltar não é regra.
Onipresentes em Fortaleza, mercearias travam um diálogo próprio com a população do entorno, conseguindo ir além: parecem existir dentro de outro tempo, em que as coisas antigas são sempre novidade. Nem parece a Capital.
No bairro Mondubim, por exemplo, o Mercadinho São José de “mercadinho” tem só o nome. É bodega das mais tradicionais. Tocado pela família de Sebastião Queiroz há mais de 40 anos, o espaço conserva boa parte do mobiliário de quando começou as atividades.
O icônico baleiro está lá, sortido de bombons, caramelos e chicletes. Sempre girando. Tem também a vitrine para colocar bolos e toda a aura de quem está ali há muitos carnavais. “Outro detalhe: aqui a gente só aceita dinheiro”, situa Altair Queiroz, irmã do proprietário.
Os itens que mais saem, segundo Altair, são os de alimentação básica, tais como frutas e cereais. Bebidas e doces também têm intensa procura. Ovos vendidos por unidade idem. Pessoas chegam ao longo de todo o dia em busca dessas miudezas essenciais na rotina. O funcionamento segue até as 20h, com pequena pausa apenas depois do almoço. É um dos motivos que justificam a relevância e longevidade da mercearia.
“Também estamos ao lado de um posto de saúde, ou seja, num lugar de passagem. Muita gente pra comprar”. O panorama de produtos no lugar é extenso. Tudo ao alcance da mão. Brinquedos, como bilas e piões, e objetos diversos – a exemplo de bolas, chilitos, condimentos em pacotinhos, agulhas e, pasmem, até unhas postiças – são outros destaques.
Mais: os proprietários ainda possuem aquelas cadernetas para registrar vendas fiadas. Apenas entre pessoas “de confiança”, porém. Uma das poucas questões alteradas ao longo de todo o tempo de funcionamento foram as grades reforçadas margeando o mercadinho. “Questão de segurança, não dá pra brincar”, sublinha Altair sentada na cadeira de balanço, rádio de pilha tocando em prateleira próxima. Existir dentro de outro tempo.
No armazém, tem jogos também
Fortaleza adentro, no Carlito Pamplona existe a Mercearia Seu Elias, igualmente com antigo dono já falecido e ostentando mais de quatro décadas de presença no bairro. Minúscula, é também farta: de tudo um pouco nas prateleiras, marcadas pelas diferentes etiquetas de preço dos produtos. Ao lado de artigos de higiene, perceba: de gêneros alimentícios a decoração.
Quem começou tudo foi Elias de Sousa, justificando o nome do estabelecimento. A ideia sempre foi sustentar a família a partir da venda de itens miúdos, mas vitais no cotidiano. Para além dos quilos de arroz e feijão, por exemplo, há vassouras, maços de cigarro, garrafões d’água, lápis e os populares “cocós”, como chamam os prendedores de cabelo.
Apesar da placa anunciando “Não vendemos fiado, por favor não insista”, fato é que a caderneta com dívidas de compradores também é realidade por aqui. Geralmente quem anota os pedidos é Gabriele de Sousa, 14, que ajuda os pais. “A clientela é grande do bairro”, sublinha.
O pagamento acontece via dinheiro ou pix. Cartão ainda não, e nem sinal no horizonte. “Vende tão pouco e só coisas pequenas, não valeria a pena”. Enquanto fala conosco, Gabriele atende a um freguês no portão – com portinhola adaptada para passar pedidos de mão em mão. Eis outra característica das mercearias: facilitam tudo, e ainda mantêm a seguridade.
Nesse sentido, cabe também enfatizar mais uma particularidade desses pequenos núcleos comerciais: funcionam no mesmo terreno da casa dos proprietários. Na frente, a bodega; nos fundos, a morada. No frigir dos ovos, é tudo a mesma coisa, praticamente. Quem chega, já é quase parente, gente próxima.
No caso da Mercearia Seu Elias, a já comentada viagem no tempo proporcionada por esses recantos é reforçada pela presença de uma máquina de jogos da marca Superama – sucesso sobretudo na década de 1990 e início dos anos 2000. Crianças e jovens se divertem inserindo uma moeda de R$0,50, prosseguindo no jogo até o game over. É real: de tudo um pouco.
Balcão é cartão postal
Agora estamos na Parangaba, no Mercadinho São Matheus. Dezoito anos e contando. É Antônio Serafim, 58, quem comanda tudo. O ex-motorista de caminhão abriu o negócio depois de sair do emprego e, hoje, coleciona fregueses na rua já repleta de mercearias. Nada de disputa acirrada. O foco é manter a tradição, otimizar os dias.
É para lá que o público se dirige a fim de adquirir sabão, chocolate, água oxigenada, biscoito. Artigos de papelaria, de aniversário e Havaianas a preço camarada também. Tem objetos que ficam pendurados. Outros preenchem as prateleiras. Um terço é detalhe bonito, toque pessoal. O que seria vintage em locais que tentam emular esse estilo, aqui é tudo na base da bodega raiz.
Só percorrer os pequenos corredores para constatar: balança de precisão, vitrines fabricadas há décadas, adesivos para todo canto, ausência de computador. Mais uma vez, a caderneta é presença. E, apesar de já aceitar cartão, o clima é mesmo de coisa antiga. A começar pelo carro-chefe da casa: “Não tem pra ninguém, refrigerante e cachaça ganham”, assegura Antônio. Na sequência, o balcão de madeira emoldurado de tudo o que é coisa torna-se cartão-postal. Passado-presente.
O funcionamento é de domingo a domingo, das 7h às 22h. Em certo instante, um amontoado de gente se avizinha do portão e fica ali proseando. Talvez esta seja a imagem central, fotografia exata das mercearias. Não importa se quando o galo canta, o sol fica a pino ou as luzes acendem. Entre pessoas e produtos, um lugar para chamar de outro lar.