Das canções de nomes como Nelson Gonçalves, Silvinho e Cláudia Barroso que o comunicador Silvino Neves ouvia nas rádios e festas nos anos 1970 às serestas nas quais o cantor Hirco via, ainda na infância, a mãe tocar clássicos de Núbia Lafayette e Fernando Mendes, a música brega chega ao coração não só pelo sentimento das letras, mas também pela nostalgia.
Estabelecido como gênero musical na cultura brasileira — ainda que com sonoridades e expressões diversas —, o popular e permanente brega segue unindo gerações em festas, shows e bares que se espalham por Fortaleza.
Neste mês, a Capital acolhe shows dos ícones Odair José e Marcelo Reis no Dragão do Mar — no próximo dia 20 — e duas edições da festa Paradão Popular, projeto de discotecagem de brega direto do vinil — nos dias 13 e 27 —, além de contar com pontos já reconhecidos pela reverência ao gênero, como o Mormaço Bar.
Como definir o brega?
“O brega é um estilo, um segmento, uma tendência”. Quem atesta é Silvino Neves, um dos principais nomes ligados ao gênero, apresentador do “Clube do Brega”, da TV Diário, e do “Clássicos do Brega”, da Verdinha FM 92,5.
“Sou de Juazeiro do Norte e ali no entorno, em Missão Velha, Barbalha, as festas nos parques de diversão eram na base da radiadora. Nesse tempo, não era nem brega, chamava-se a música da boemia”, rememora ao Verso.
Silvino ainda ressalta que o termo é maior do que a limitada visão de senso comum permite ver. “‘Brega’ foi colocado num contexto pejorativo e não é. O que não presta seria ‘brega’, mas não tem nada a ver”, defende.
Como explica o DJ Canuto Lion, um dos criadores do projeto Paradão Popular, o significado negativo ligado à palavra é fruto de um movimento histórico da música no Brasil — contado no livro “Eu não sou cachorro, não: música popular cafona e ditadura militar”, do jornalista Paulo César de Araújo.
“O brega é aquilo que foi descartado de vários gêneros, que era simplesmente comercial e foi sendo jogado de canto, apesar de vender bastante, mas não dava prestígio às gravadoras”, narra.
“Reginaldo Rossi, ali no final dos anos 1970, se reconhece como brega e entende que isso dá a liberdade de falar coisas que outros artistas não falariam. O brega tem essa liberdade”, exemplifica Canuto.
Temas como traição (“Em Plena Lua De Mel”, Reginaldo Rossi, 1981), pílula anticoncepcional (“Uma Vida Só”, Odair José, 1973) e prostituição (“Vou Tirar Você Desse Lugar”, Odair José, 1972) despontam na música brega
Sonoridade diversa, letras sentimentais
A principal característica do gênero, defende Silvino, é a letra de “sofrência”. “Fossa, dor de cotovelo, fala de paixão mal resolvida, sentimentos”, elenca.
“São as letras que justificam o alcance permanente dessa música. Têm história, não passam nunca. Eis a razão da música brega estar viva, agora em outras roupagens, mas sempre lá: a boa letra”
Em diálogo, a cantora Mona Gadelha acrescenta: “Algumas letras falam de situações — a maioria de relacionamentos amorosos — de forma muito direta, e por isso mesmo verdadeira, derramada, exagerada. É a poética do exagero”, define.
Nome mais ligado, de partida, ao rock, Mona partilha ter referências do brega na carreira. “Artistas como Odair José e Reginaldo Rossi nunca particularmente coloquei nesse rótulo. Eu simplesmente curtia, apreciava suas canções - o modo direto de falar das agruras e desalinhos do amor, por exemplo”, diz.
As inspirações estão também no mais recente single lançado por Mona, “Tudo Bem Comigo”, produzido por Rômulo Forés. “O brega tem essa forma de contar uma narrativa com começo, meio e fim, e ter um desfecho às vezes inusitado, mas sempre muito interessante. Procurei utilizar esse recurso”, explica.
“O brega traz verdade, sentimentalismo, exagero, o que faz dele um gênero único no mundo. Música romântica tem em todo canto, mas um desdobramento como o brega é coisa própria do Brasil”, arremata Canuto.
Em termos de sonoridade, o DJ ressalta: “Ele não é um ritmo — pode ser bolero, soul, balada, samba canção”. Por isso, segue, “sempre foi muito difícil rastrear o que é ou não brega”.
“Tem gente que briga, ‘tal artista não é brega!’, porque ele não é uma coisa exata, foi sendo construída a partir de como a indústria musical tratou esses cantores e essa música”, aponta.
Observando a “canção popular brasileira, no sentido mais amplo, de popular propriamente dita”, Mona lembra: “Para mim, a chamada música que já foi chamada de ‘cafona’, hoje brega, sempre fez parte do nosso imaginário e do consumo na indústria cultural”.
“É claro que a indústria precisa - e impõe - prateleiras, hoje virtuais, os nichos. E o brega e seus subgêneros têm as suas, felizmente rompendo preconceitos, com os ‘clássicos’ alcançando outras gerações pós-anos 70”, observa a cantora.
Do “original” aos novos públicos
Enquanto apresentador de programas dedicados ao gênero, Silvino observa que a audiência que o acompanha é formada especialmente pelas “pessoas mais maduras”. “São o público fiel, a turma depois dos 40, por aí, que viveu a fase, podemos dizer, original do brega”.
O público do gênero no geral, no entanto, ele reconhece como diverso. “Em todos os bares de Fortaleza, onde você for na noitada por aí afora, de repente toca um breguinha e todo mundo bate palma, gosta”, garante.
Está aí o Mormaço Bar para comprovar o que afirma o comunicador. Na casa, que fica na Aldeota, o brega era tão comum nas caixas de som que os proprietários Júnior Lima e Priscila Holanda dedicaram um dia da semana a ele: a Segunda Brega.
“Ela surgiu lá em 2019, quase que junto com a fundação do bar, da paixão minha e da Priscila pela música brega”, conta o sócio. “Logo, se tornou o dia da semana com maior visitação de público, a ponto da associação até hoje do bar com ela”, destaca.
Na seleção musical, não faltam Odair José, Reginaldo Rossi e Paulo Sérgio. “Mas, com tamanha aceitação, nossa pesquisa musical é enorme e consegue ouvir desde clássicos dos anos 1960 e 1970 até grandes nomes do início dos anos 2000”, avança.
“O que era uma paixão nossa acabou contagiando um público enorme que vai de jovens a mais velhos que batem ponto nas segundas”, compartilha Júnior. A faixa etária ampla é característica, também, dos shows “Hirco Canta Brega”, do cearense Hirco.
Repensar as letras
O projeto musical, fruto do contato “de berço” de Hirco com o brega a partir das serestas onde a mãe tocava, é descrito como uma homenagem do artista à genitora. “O que mais gosto e o que faz sentido é a minha raiz”, atesta.
“Quando foi criado o conceito do brega, ele foi muito associado às pessoas de baixo poder econômico, às margens da sociedade, então cantá-lo também vem das minhas origens, porque sou um rapaz que veio do Conjunto Ceará, da periferia, que andava nos bares à noite vendo mulheres e homens rendidos ao poder do brega”
O repertório das apresentações de Hirco — que já passaram por palcos como Estação das Artes e Centro Cultural Bom Jardim — vai de “Lama”, de Núbia Lafayette, a “Garçom”, de Reginaldo Rossi, passando por “Porque brigamos”, de Diana.
As letras de “amor exagerado”, ele ressalta, por vezes trazem conteúdos machistas e agressivos, o que não deixa passar em branco.
“Nos meus shows, discuto isso quando a música traz uma letra machista: ‘Aqui não, viu, nem todo bebum tem razão’”, responde, parafraseando verso da canção de Reginaldo Rossi. A mensagem, ele reforça, chega a um público que vai “do jovem ao idoso”.
Entre os mais novos, inclusive, o cantor observa um movimento específico de ligação com as músicas: a memória de pais e avós. “ Percebi que o meu show traz uma memória afetiva, sensibilidade, saudade”, destaca.
É como também Silvino nota: “O jovem absorve a música brega lembrando. ‘Só me lembro do meu vô, do meu pai, ave Maria’”, afirma. “É bom que se diga que os ícones estão todos indo embora, restam bem pouquinhos, e a turma nova está absorvendo bem. Tem muita gente regravando músicas que já passaram e agora voltam de nova roupagem”, celebra.
“O brega é essa forma de conexão e de homenagem dessas pessoas mais novas às que não estão mais ali”, resume o DJ Canuto Lion, do Paradão Popular. “As pessoas vão dando significados próprios para o brega e para as músicas. Todos os sucessos têm muita história e muita carga de memórias”, define.
Ecoa pelas ruas da cidade
O próprio Paradão Popular, como conta Canuto, veio a partir de memórias pessoais. Ele, que atua há 18 anos como DJ de reggae, guarda lembranças da infância com a mãe ouvindo discos do gênero.
“Minha mãe é a minha maior referência musical, ela frequentou muitos bailes, tertúlias. Como coleciono discos há muito tempo, sempre deixei guardados uns que ela gosta, lembra da juventude”, explica Canuto.
A partir da tradição do reggae em Fortaleza de contar com discotecagem em vinil, surgiu a inspiração para fazer o mesmo com o brega. O Paradão foi criado, então, por ele e DJ Thiagón em 2023. Hoje, o projeto segue com Canuto e Amanda Lopes na produção.
Ele vê o projeto como um “inventário” do que era popular no gênero no Estado, já que os “bregas” do Pará ou de Pernambuco, ressalta, possuem características próprias. “A gente tem nuances do brega aqui, então o Paradão é uma coleta dos sons e discos que fizeram história no Ceará”, define.
No projeto, ressalte-se, a história geral se conecta às narrativas pessoais. “O que guia muito o Paradão é a história das pessoas”. Por isso, ela é a festa perfeita para fazer pedidos ao DJ.
“Tem gente que diz ‘meu nome foi por causa da música do Fernando Mendes’, e a gente já conheceu algumas Tainans. Outra pessoa diz ‘nasci por conta dessa música’ e é ‘Pare de tomar a pílula’ (‘Uma Vida Só’)"
O brega, como Canuto destaca, segue celebrado justamente por ser tão presente nas vidas de públicos diversos. “Nosso repertório é o que você escuta num bar, na Praça do Ferreira, no Raimundo dos Queijos, no Montese, na Barra do Ceará”, reforça.
“Não é que a gente fez esse repertório, a gente colheu. O trabalho do Paradão foi recolher isso tudo que já existe, já está disseminado. O brega existe, está por aí na cidade, nas ruas. O repertório já existe, já é popular”
CLUBE DO BREGA
- Quando: exibição aos domingos, às 12 horas
- Onde: TV Diário (Canal 22.1 em HD)
- Mais informações: @silvinonevesoficial e @tvdiario
CLÁSSICOS DO BREGA
- Quando: transmissão de segunda a sábado, de 22 horas à meia-noite
- Onde: Verdinha FM 92.5
- Mais informações: @silvinonevesoficial e @verdinhaoficial
FÉRIAS NO DRAGÃO - SHOWS DE ODAIR JOSÉ E MARCELO REIS
- Quando: 20 de julho de 2024 (sábado), às 19h30
- Onde: Anfiteatro do Dragão do Mar (Rua Dragão do Mar, 81 - Praia de Iracema)
- Quanto: R$ 20 (meia) / R$ 40 (inteira) ou ingresso solidário a R$ 25 + 1kg de alimento não perecível, exceto sal; à venda na bilheteria física de terça a domingo, das 14 às 20 horas, ou na plataforma Sympla Bileto
- Mais informações: no Instagram @dragaodomar ou no site do Dragão do Mar
PARADÃO POPULAR
- Quando: 13 de julho, às 21 horas
- Onde: Deixe Comigo Bar (rua Castro Alves, 520 - Joaquim Távora)
- Quanto: R$ 10 a pulseira, permitindo saída com retorno
- Mais informações: @paradaopopular ou @deixecomigobar
- Quando: 28 de julho
- Onde: Snake Bar (rua Carapinima, 1994 - Benfica)
- Mais informações (a serem divulgadas): @paradaopopular e @snakebar2020
MORMAÇO BAR
- Quando: Segunda Brega todas as segundas, de 18 horas à meia-noite; funcionamento geral também às quartas e quintas, no mesmo horário, e sextas e sábados, de 18 horas à 1 hora
- Onde: rua Isac Mayer, 345, Aldeota
- Mais informações: @mormacobar
HIRCO
- Siga o artista: @hircodasilva