Lá fora é biscoito de polvilho. Entra no Ceará e vira peta. Leve e crocante na medida certa, o quitute nunca sai de moda, festejado por diferentes paladares. Quem nunca parou em um supermercado ou restaurante à beira da estrada para comprar um pacote? E nem dividiu um cafezinho com aquele sabor que a gente bem conhece? É coisa boa e muito nossa.
Neste 2024, a fama da delícia se ampliou. Conforme relatório do Google, uma das receitas que mais bombaram em pesquisas foi a de biscoito de polvilho gigante, também conhecido como montanha-russa. Além do tamanho, o diferencial é que o lanche exibe a crocância de um biscoito de polvilho por fora e o puxa-puxa de um pão de queijo por dentro.
A mágica acontece quando, depois de misturar os ingredientes no liquidificador, a massa cresce de maneira rápida, praticamente quadruplicando de volume, o que deixa a receita com aspecto gigante. O que poderia de início poderia ser só algo inusitado, acaba voltando o olhar para um alimento capaz de atravessar gerações e ser cada vez mais presente à mesa.
Desde que abriu as portas da Santa Clara Padaria Gourmet, no bairro Maraponga, em Fortaleza, Marilia Holanda Martins viu o negócio prosperar devido à venda de peta. A iguaria tem fabricação própria no lugar há quase 40 anos, quando a loja iniciou as atividades. O primeiro proprietário, Sr. Tarciso Martins, fabricava o alimento antes da abertura da padaria.
“Como um biscoito gostoso, salgadinho e acessível, logo se tornou tradição em nossa padaria, com receita caseira e feita de forma artesanal. A peta está presente na produção diária, não podendo faltar nas prateleiras. É muito procurada pelos clientes”, dimensiona Marilia.
Segundo ela – que credita a origem do lanche a Minas Gerais – a peta conquistou o Ceará há muito tempo, abraçando desde o público infantil, tornando-se lanchinho na escola, até jovens e adultos, que o degustam assistindo a um filme ou mesmo como petisco. Na padaria Santa Clara, além da peta tradicional, há uma com sabor de parmesão. “Procuramos sempre aprimorar nossos produtos, mas priorizamos a receita tradicional”.
História e origem
Na verdade, a peta tem origem portuguesa e ganha esse nome em localidades como Ceará, Piauí e Maranhão. Quem explica é dona Teresa Emília, mestra da cultura do Museu Orgânico Casa dos Licores, em Viçosa do Ceará.
Conforme pesquisas, ela constatou que a palavra vem do latim “pulvu”, dando origem ao português “pó” e “poeirento”. Peta, contudo, quer dizer mentira, enganação, uma vez que os portugueses entendiam que quanto mais você comia a delícia, mais queria continuar comendo e não matava a fome – algo bastante semelhante ao que acontece hoje.
“Essa percepção nasceu a partir dos jesuítas no Ceará (Viçosa, Aquiraz, Itapipoca, Caucaia, Aracati e Icó)”, completa a estudiosa. Por sua vez, Nilza Mendonça, pesquisadora cearense de cultura alimentar, diz que a origem é incerta. Alguns alegam ser criação mineira; outros, carioca – muito em razão dos Biscoitos Globo, famosos a partir da tradição dessa elaboração.
“No Ceará, a região mais tradicional é a de Viçosa, o que não elimina o consumo em outras. No extremo oposto do Estado, por exemplo, na região da Chapada do Araripe, a peta também é bastante consumida, sendo produzida com a mesma tradição da região norte e apontada como produto genuíno de nossa cultura alimentar”, situa Nilza.
A relevância da peta está relacionada ao sabor, textura e praticidade, mas também pelo fato de que esta, assim como várias outras tradições alimentares de nossa cultura, utiliza como base a mandioca, insumo-símbolo da ancestralidade cearense, com inúmeras possibilidades de uso na gastronomia – feito o milho, o coco e tantos outros de nossa biodiversidade.
“Aprendemos com os indígenas a utilizar esse insumo e ele faz parte de diversas preparações tradicionais. A mandioca também se mostra como elemento que demanda técnicas de muita complexidade, sendo grande base estrutural na formação dos hábitos alimentares brasileiros, com preparos como tapioca, beiju, maniçoba, farinha, tucupi e pão de queijo. Dessa forma, a peta configura-se como mais uma possibilidade de uso desse mesmo ingrediente tão significativo para nossa cultura e soberania alimentar”.
Diferentes profissionais de Gastronomia do Serviço Nacional de Aprendizagem Comercial (Senac) dividem as impressões: Danielle de Assis, Lucas Braga, Nilza Mendonça, Ícaro Pinheiro, Debora Moreira, Beatriz Lima e a consultora de Gastronomia Vanessa Santos. São unânimes: a peta é de extrema importância para o paladar cultural.
Viçosa do Ceará é destaque
Especialmente no norte do Ceará, gerações da Serra da Ibiapaba são criadas com a peta desde criança. O alimento faz parte do consumo diário de todas as casas da região, envolvendo grande parte das famílias. De acordo com os gastrônomos do Senac, todas as cidades da Serra produzem peta, mas a que mais se destaca, conforme já sublinhado, é Viçosa do Ceará.
O município é conhecido por abrigar mais de 100 produtores de peta artesanal – alguns visando apenas o consumo familiar e regional; outros com caráter comercial. “A peta é feita com goma de mandioca e assada no forno de barro. Atualmente os produtores que a vendem comercialmente já fazem em fornos elétricos”, situam os pesquisadores.
O preparo remete bastante à técnica e aos ingredientes do pão de queijo, o que sugere a teoria de que a peta nasce a partir dessa inspiração de outro produto tão emblemático da gastronomia brasileira. A empresa Peta Viçosa é uma das que se somam ao costume cearense de produzir a iguaria no interior.
Tudo começou em 1989 a partir do senhor José Vitorino de Andrade Filho, conhecido como Senhor Zezinho. À época, ele observou que as petas eram tão conhecidas que chegavam à Capital, Fortaleza. Foi quando decidiu comercializar, conseguindo os pacotes com uma senhora e levando-os para serem vendidos. Assim o fez por muito tempo, até que, por motivos familiares, a senhora passou a não fornecer mais a ele.
O homem, então, conheceu senhor Dandão e dona Socorro, responsáveis por iniciar o fornecimento para ele e, assim, formar nova parceria. Com o passar do tempo, o casal ampliou a fábrica, a casa, e compraram um transporte. O senhor Zezinho, assim, passou a fretar carro para pegar as petas, uma vez que a demanda apenas aumentava.
A partir do falecimento dos dois, tudo ficou a cargo do filho, Marciano, que tempos depois arrendou a fábrica e abriu espaço para que o senhor Zezinho tocasse o empreendimento. Por lá, a receita leva sal, amido de mandioca, ovos e óleo de coco babaçu. O diferencial é manter a melhor qualidade nas matérias-primas.
As Petas Viçosa podem ser encontradas nas padarias de Sobral e em cidades vizinhas à Serra da Ibiapaba. “Inclusive, estamos atrás de um distribuidor em Fortaleza. Será um prazer fornecer nossas Petas Viçosa à Capital”, diz Marcílio Carneiro Andrade, atual proprietário.
O passo a passo da produção
Em Caucaia, Região Metropolitana de Fortaleza, nossa reportagem teve acesso ao passo a passo da fabricação industrial da peta na empresa Madi Biscoitos. O empreendimento começou a produzir o alimento em 2021 e vê a clientela aumentar ano após ano. Além da Madi Biscoitos – onde são fabricados os biscoitos de polvilho – o grupo Mader conta com a Mader Indústria, que fabrica outras linhas, a exemplo de amanteigados, sequilhos e suspiros.
O processo de fabricação da peta que acompanhamos envolve:
- Seleção de matéria-prima
- Pesagem de insumos
- Escalde – quando a gordura aquecida é misturada ao polvilho
- Homogeneização (sal, leite e componente de sabor, que pode ser queijo ou suco de cebola);
- Dosagem – quando massa é levada à pingadeira para formação
- Forneamento
- Resfriamento
- Embalamento
- Encaixotamento
- Expedição para todos os supermercados de Fortaleza
O tempo médio de cada fornada é de 22 minutos, o que ratifica a simplicidade da receita – embora também o grande cuidado na preparação de tudo. “Em comparação aos outros produtos no mercado, podemos dizer que nossas petas têm aquele sabor autêntico e valor afetivo. Lembra casa de vó, mas com a qualidade que a indústria pode oferecer, em termos de tecnologia e segurança de alimentos”, explica a empresa.
Os sabores são três. A Tradicional tem formato argola e sabor característico do polvilho. Na Madi, utiliza-se polvilho artesanal, o que traz um sabor mais forte e reforça a autenticidade do produto. Já a de Queijo tem formato bola e é feita com queijo parmesão ralado. Por fim, a de Cebola é no formato palitinho com o genuíno suco de cebola, apurando a experiência.
“As petas Madi, na embalagem de 50g, tem preço médio de R$ 3,49 nos pontos de vendas. Estamos presentes nas pequenas, médias e grandes redes de supermercados da Capital, Região Metropolitana e interior do Estado e também em mercadinhos e padarias. As petas representam mais de 60% do faturamento de nossa empresa”.
A receita-base para o preparo das delícias em escala industrial é compartilhada pelo empreendimento. Veja só:
- 10 kg de polvilho azedo
- 4 litros leite
- 2,5 kg de óleo ou gordura
- 3 litros de água
- 10 ovos
- 250g de sal
Após reunir esses ingredientes, a Madi Biscoitos saboriza com queijo parmesão ou cebola – e haverá novidades em 2025. Crocância garantida e gostinho viciante. “Seja no cafezinho da tarde, no lanche na escola ou no terminal de ônibus, a peta ocupa um lugar de memória afetiva”, sublinham.
“Hoje em dia, ela se mantém como opção de snack. Por ser assada, ter menos sódio e gordura que outros salgadinhos da categoria. E para os celíacos e pessoas alérgicas, a proteína do trigo: uma opção sem glúten e deliciosa”. Quem resiste?