O sonho virou realidade em 2016. Foi inaugurada, no bairro Pici, a biblioteca comunitária Papoco de Ideias. Além do direito ao livro, à leitura e à literatura, a casa fortaleceu o acesso a outras linguagens artísticas, a exemplo de dança, teatro, cinema e artesanato. “Vontade de mudar o mundo a partir do nosso lugar”, situa Argentina Castro, idealizadora e uma das cuidadoras-gestoras do espaço.
Seis anos depois, a alegria dá lugar ao desânimo. A biblioteca teme fechar as portas muito em breve. Falta apoio para custear despesas de água, luz e internet. Falta também a compreensão de que o lugar é muito mais que um acúmulo de livros.
Articulado com postos de saúde, comerciantes locais e uma diversidade de instituições, ele contribui com o direito à cidadania na comunidade por meio de série de iniciativas – da doação de cestas básicas à segurança física e emocional para crianças, jovens e famílias.
“Somos, na maioria dos bairros onde estamos instalados, os únicos equipamentos culturais. Isso tem um custo. Preocupa que comunidades inteiras deixem de ter acesso ao que proporcionamos baseado no fato de que são direitos não garantidos pelo poder público. Para onde vão as crianças se fecha uma biblioteca onde elas leem, brincam e acessam conhecimentos capazes de tornar a vida delas menos dura?”, questiona Argentina.
Esforços em vão
Enfrentando a mesma dificuldade, estão vários outros agentes ligados a bibliotecas de cunho popular em Fortaleza. Wesley Farpa é um deles. Coordenador da Biblioteca Adianto, na Barra do Ceará – inaugurada no fim de 2019 – precisou finalizar temporariamente as atividades do lugar devido ao insustentável panorama.
Segundo ele, apesar de todos os esforços, não foi possível superar o desafio de manter o espaço ativo. E não foram poucas as tentativas. No ano passado, por exemplo, 12 bibliotecas comunitárias da Capital se articularam na Campanha Biblioteca Urgente, visando a implementação de políticas públicas para esses equipamentos.
A ação aconteceu sobretudo por meio do perfil @bibliotecanazaria, no Instagram. Nele, representantes de cada projeto reivindicaram medidas urgentes de financiamento das atividades e a garantia de existência dos locais – muitos deles alugados ou funcionando nas casas dos coordenadores.
Também não faltaram insistências junto à Secretaria da Cultura de Fortaleza (Secultfor), visando maior atenção à demanda. Em publicação nas redes sociais na última segunda-feira (18), representantes da Adianto explicaram todo o contexto. “Essa luta [da Campanha Biblioteca Urgente] foi travada nos âmbitos institucionais e comuns da sociedade, ocupando a Secultfor diversas vezes, a Câmara Municipal e as redes sociais”, destacaram.
“Saiu um edital excludente e burocrático da Secultfor voltado às bibliotecas, e quase nenhuma conseguiu passar por erros pequenos de documentação. Depois disso, a resposta não veio, o descaso persistiu e a burocracia só aumentou. Não teve recurso, só promessas, e nenhuma sensibilidade em se comunicar com quem atua voluntariamente”, continua o texto.
Para Wesley Farpa, a insatisfação por parte do segmento é enorme. Também desde o ano passado, pouco antes do fechamento do Orçamento Plurianual de Fortaleza, ele e outros coordenadores de bibliotecas comunitárias fomentaram diálogos com vereadores de diversas frentes – ideológicas e partidárias. A tentativa era de que esses parlamentares apoiassem a inclusão das iniciativas de cunho popular no orçamento. Não foi possível.
“Então, fomos na Secultor, que não fez o mínimo – uma pesquisa sobre o impacto das bibliotecas ou um direcionamento delas ao Orçamento. Não tivemos nenhum retorno disso. Foram reuniões e mais reuniões e o que saiu foi, no máximo, uma declaração de apoio, que não serviu de nada para a entrada no Orçamento Plurianual”, detalha.
Além disso, conforme alega, no exato dia em que ele declarou o fechamento da Biblioteca Adianto por falta de dinheiro, uma pessoa do Sistema Estadual de Bibliotecas do Ceará procurou Wesley para retirar o espaço do referido sistema. Na ótica do gestor, faltou acolhimento no sentido de compreenderem a real situação da casa e, assim, evitar o fim da mesma.
Efeitos da ausência de bibliotecas
Questionada pela reportagem sobre quais diálogos já foram realizados com as bibliotecas comunitárias e que ações e/ou projetos estão sendo desenvolvidos pela Pasta para contemplar os espaços, a Secultfor informou, por nota, que acompanha esse cenário da Capital junto a representantes de cada equipamento.
Além disso, mencionou: “Recentemente, foram realizadas reuniões com entidades para dialogar sobre as demandas e as necessidades para manutenção dos equipamentos populares”.
Argentina Castro calcula que os efeitos da ausência de bibliotecas nas comunidades serão devastadores a curto, médio e longo prazo. “Uma biblioteca comunitária fortalece a autoestima, empodera, informa, esclarece, afeta de forma positiva, melhora o dia a dia de quem a acessa, abre espaço para a imaginação e a subjetividade fluir sem o peso que é morar aqui”, enumera, referenciando a precária situação dos bairros onde elas estão inseridas.
O sonho da gestora é que os espaços fiquem abertos de 8h às 18h, fornecendo três alimentações diárias, com salas amplas e climatizadas para cada uma das diferentes linguagens artísticas. Em suma, um lugar onde crianças e jovens possam aprender, se desenvolver e se alimentar, criando e crescendo por dentro e por fora. “Um grande equipamento cultural que seja o melhor lugar do bairro pra passar o dia”.
“Muitas crianças moram em vilas, lugares pequenos em que há apenas um muro e um corredor estreito na frente de casa. Me fascina pensar que elas podem sonhar, a partir do quintal verde da Papoco, com uma vida melhor. Me fascina o sonho, mas, antes do sonho, a capacidade de sonhar, que é uma das primeiras coisas que a violência e a pobreza nos tira”.
Wesley Farpa segue no mesmo rumo. De acordo com ele, há um antes e depois numa comunidade diante da presença de bibliotecas comunitárias. Com o tempo, após serem inauguradas em lugares que geralmente negam esse direito aos habitantes, elas se tornam até ponto de referência. “É incrível perceber como a periferia lê. A periferia lê demais. O problema não é falta de leitura, mas falta de incentivo mesmo”, analisa o gestor.
Fechadas as portas e janelas, sobra apenas o silêncio e a impossibilidade. “É um impacto monstruoso, principalmente no acesso ao livro. Impactamos de forma positiva ao chegar e agora, ao sair, de forma negativa. As pessoas estão entendendo que isso é de competência dos órgãos, principalmente da Prefeitura, a fim de manter esses espaços abertos”.
Escala nacional
A percepção se estende para todo o Brasil. Capitaneada pelo Instituto Interdisciplinar de Leitura e Cátedra Unesco de Leitura da PUC-Rio, em conjunto com o Itaú Cultural, a pesquisa “O Brasil que Lê” aponta que, sem nenhuma atenção da maior instância política no Plano Nacional de Livro e da Leitura (PNLL), são os projetos da sociedade civil e de gestões públicas os responsáveis por favorecer uma nação leitora.
Isso não impede que as iniciativas convivam com um sem número de dificuldades. 39% das ações mapeadas pelo levantamento são mantidas a partir de financiamento próprio dos responsáveis, demonstrando os desafios em conseguir apoio.
Além disso, a abrangência dos projetos encontra maior vigor nas esferas municipal (28,01%) e comunitária (23,3%), sinal de que a leitura está se disseminando em esferas mais próximas da população.
“Meu sonho é que para cada bar, cada igreja e cada loja existente, pudéssemos encontrar também uma biblioteca. Para que Fortaleza seja reconhecida não mais como a Capital da insegurança, mas sim como a Capital que investe nas bibliotecas, nas comunidades, fazendo com que os bairros possam desenvolver as próprias soluções para problemas onde o Estado não chega”, conclui Wesley.