Parque Araxá, Fortaleza, 29º C. Duas imagens de Nossa Senhora dividem espaço com São Jorge e Santo Expedito. O interior do recinto é iluminado, mas falta claridade. Abaixo do acanhado altar, garrafas e garrafas de cachaça, copos de alumínio, um daqueles espelhos de moldura laranja. Estamos no Bar do Zé Bezerra. É sábado, e chove.
Lá fora, na área de convivência, parece fazer sol. Uma roda de samba acontece, desanuviando o temporal. Entram Adoniran Barbosa (1912-1982), Clara Nunes (1942-1983), Benito di Paula. Entra uma pessoa e outra, instrumentos passando de mão em mão, mesa no centro com tira-gosto. Alguém comenta: “Isso é que é música!”. Outro enche o copo de cerveja.
Orquestrando esse fluxo de canção, alegria e encontro está Célia Maria Bezerra, 72. Desde 2005 ela está à frente do bar que leva o nome do pai. Natural de Solonópole, interior do Ceará, Seu José Bezerra (1917-1994) ergueu as portas do estabelecimento na década de 1970. Nascido bodega, o lugar cresceu boteco. “Tô aqui pra manter tudo. Enquanto eu puder, eu fico”, assegura a herdeira.
Quem quiser encontrá-la, é só se dirigir ao balcão de madeira, passagem obrigatória. De lá pouco sai, mas nem precisa: tudo o que é importante está à mão. O baleiro preenchido com fartura de bombons; os abridores de garrafa; as bandejas onde são levadas as bebidas e, sobretudo, os quadros que emolduram pérolas, feito “O mundo dá muitas vodkas”.
A clientela responde a esses detalhes com gosto. São as minúcias que fazem o Bar do Zé Bezerra. Cada frequentador vai ocupando o ambiente pouco a pouco. Sentem-se em casa. O “quente” mesmo é no domingo, quando a Rua Dom Manuel de Medeiros é tomada por antigos e novos boêmios. No sábado, porém, já é possível sentir a energia. Eu sinto. Fortaleza ali pulsa em doses de pinga e choro, e mais gente é convidada para a roda.
Reunir e celebrar
Talvez o que mais fascina e atrai no espaço é o desejo de reunião. São muitos os que chamam o bar de “família”. Miguel Nascimento é um deles. O funcionário público frequenta o endereço desde os 15 anos de idade – quando tudo ainda era mercearia. Hoje, aos 61, suspira por aquele tempo, mas também vibra pelo fato de a casa manter a tradição.
“A gente era universitário. Tudo liso, não tinha dinheiro. Tocávamos em outro bar, mas de repente a dona faleceu. Assim, viemos pro seu Zé Bezerra pedir pra tocar aqui. Antes de fazer serenata pras namoradas, a gente passava pra tomar uma”, recorda, copo na mão. “De início, seu Zé não gostava das rodas de samba, mas foi se convencendo”.
A profissionalização desses ajuntamentos musicais se deu a partir de Carlos Alberto Vieira, o Carlão. Falecido em 2020, bem no início da pandemia de Covid-19, foi ele o responsável por trazer cada vez mais nomes do samba e do choro fortalezense para compor as rodas. A maioria ainda permanece. Não cobram couvert, não fazem cerimônia. Reunião familiar.
Quando converso com Vicente Paulo de Barros, 57, esse universo se agiganta. Entre o violão e o cavaquinho, o instrumentista faz a festa no Zé Bezerra aos sábados, domingos e feriados – dias em que o bar está aberto. “Eu moro bem próximo daqui. Atuo profissionalmente, mas sempre volto pra cá. É onde diferentes gerações se encontram, e eu sou prova disso. Tem muita gente nova chegando, uma galera que vem da Gentilândia e praticamente fecha a rua do bar”.
Cimar Diniz, 41, também é desses que devem muito ao estabelecimento. Pausa o banjo para prosear com a gente. Exibe sorriso. Era “menino véi” quando se apaixonou pelo lugar. Influência do pai músico, também caminha por essa estrada e encontra, no cinquentenário reduto, a alegria de viver. “Não tem adjetivo que demonstre o quanto eu gosto daqui. Bar é tradição. O ambiente não tem confusão, é muita gente bonita, amiga. Tira-gosto da melhor qualidade, cerveja gelada… O bar é top”.
Patrimônio cultural. E, se moldado por fortes costumes, igualmente atento para seguir vivo. No WhatsApp, dois grupos são dedicados ao bar. Um para divulgação da programação, outro para a logística das rodas de samba. O encontro narrado nesta reportagem foi combinado no feriado de Tiradentes, por exemplo. “Aqui é muita amizade. Você senta e, se souber samba antigo, tá valendo. Se não souber, não dá não”, brinca Cimar.
Silêncio nunca mais
Há dois anos, o Bar do Zé Bezerra fechou as portas pela primeira vez em meio século de existência. O coronavírus levou colegas, silenciou a gandaia, suprimiu o contentamento. Dona Célia lembra do vazio. “Fiquei muito triste, e não só eu”.
Mas agora os amigos voltam e ocupam tudo. Gostam de encarar as paredes, ilustradas com as mesmas cores que estampam conterrâneos – feito o Cantinho Acadêmico, no Benfica. A pintura revela os rostos de quem compõe a história do lugar.
Gostam também do ar de descompromisso, de folga eterna. Do cheiro de feijão verde e calabresa. Do sossego movimentado. “É onde se encontra um dos melhores sambas de Fortaleza porque é um samba de raiz. A Célia é uma mãezona pra todo mundo. É tão mãezona que ela briga, depois a gente volta e faz as pazes. É um negócio desse naipe. Tudo irmandade”, diz a funcionária pública Luciana Castelo Branco, 48, cliente há 20 anos.
Pouco depois vou embora. A chuva ainda banha minha estreia no Bar do Zé Bezerra. Ele é quase uma cidade. É um bairro inteiro. Já saindo, dona Célia me chama. Coloca um porta-cerveja personalizado na minha mão. Um presente, onde está escrito: “A amizade, nem mesmo a força do tempo irá destruir”. Prometo voltar o quanto antes. Cumprirei o trato.
A roda de samba engata “Ah, como eu amei”. Faz frio e folia. Aceno internamente para as duas Nossas Senhoras na prateleira, em sinal de breve despedida. Aceno para as cachaças. O canto soa alto: “Eu era feliz, era a vida”. O Bar do Zé Bezerra talvez seja isso: ser feliz e saber.
Serviço
Bar do Zé Bezerra
Rua Dom Manuel de Medeiros, 71 - Parque Araxá. Funcionamento: somente aos sábados, domingos e feriados, de 14h às 20h.