Artesãos do Ceará criam presépios regionais com peças de madeira, goma de mandioca e mais

Produção de lapinhas destaca relação com o sagrado e demonstra originalidade da arte cearense

Um dos mais conhecidos e antigos símbolos do Natal, o presépio se mantém como um importante item de decoração durante as festas de fim de ano. Além das tradicionais “lapinhas” que retratam o nascimento de Cristo junto à Maria, José, os Reis Magos e os animais do pastoreio, os cearenses podem conferir, ainda, versões criativas das pequenas maquetes, projetos autorais de artistas de diversas cidades do Estado: os presépios artesanais.

Anualmente, artesãos da Capital e de outras regiões do Ceará – com destaque para o Cariri – se organizam para construir presépios originais, que não só retratam a relação com a religiosidade, mas também expandem as possibilidades de criação artística de quem se dedica à arte cearense popular.

A artesã cratense Lusy Lacerda, 49, é uma das que se dedica com afinco à tarefa. Há mais de uma década, ela constrói presépios diferentes a cada ano, inspirada pela cultura caririense e impulsionada pela tradição artística de sua família.

Bisneta de uma cozinheira de mão cheia, neta de uma costureira talentosa e filha da cordelista e mestra da cultura Josenir Lacerda, Lusy – que se define como uma artista “com muitas camadas, mas essencialmente artesã”, conta ter orgulho de dar continuidade à herança criativa das mulheres que a antecederam. 

Neste ano, ela elaborou um projeto feito à base da tradicional massa de goma de mandioca, gesso e parafina que retrata um pouco de suas memórias familiares – com elementos que remetem a memórias de muitos cearenses e nordestinos. 

“Me inspirei na casa da minha bisavó, onde eu ia muito na minha infância”, conta. “Busquei reproduzir detalhes como o filtro de barro, os copos de alumínio, quadros na parede, a parede chamuscada pelo candeeiro, a bateria de panela”, completa. 

Faço várias coisas, mas o objeto principal, que me traz a minha renda, é o jogo de xadrez temático, feito com goma de mandioca. Com a massa feita à base da goma de mandioca, eu modelo os personagens do cangaço, da cultura popular, as bandas cabaçais, o bumba meu boi, todos esses elementos que a gente tem na nossa cultura.”
Lusy Lacerda
Artesã

O presépio, além dos detalhes cristãos, inclui um pouco da rotina da casa de dona Olívia, sua bisavó, que Lusy descreve como “uma mulher muito aguerrida e muito sábia”. Além dos materiais tradicionais, a artesã usou pedaços de madeira descartada, como palitos de picolé e de fósforo. “Os móveis todos eu fiz  assim, com esse tipo de madeira”, destaca.

Outro artista caririense que dedica parte do seu talento à construção de presépios é Boni Belarmino, 35. Natural de Missão Velha, mas residente de Juazeiro do Norte há muitos anos, o artista começou a produzir brinquedos de madeira na infância, para brincar e compartilhar com outras crianças, mas há dez anos decidiu transformar o hobby em profissão.

Inspirado pelo Mestre Vitalino, de Caruaru (PE), e muitos artistas caririenses – como a própria Lusy e Demóstenes Fidelis –, decidiu se dedicar ao que chama de “bonecos cabeçudos”, miniatura de 13 a 15cm que retratam, em sua maioria, grandes personalidades nordestinas, como Belchior, Luiz Gonzaga, Patativa do Assaré e Padre Cícero.

Em 2024, Boni decidiu unir a arte de fazer bonecos à tradição do presépio natalino, prestando uma homenagem aos Mestres da Cultura que o inspiraram em uma lapinha grande, colorida e diversa – assim como o Cariri. 

“Costumo pensar que eu mesmo não tenho uma imaginação nenhuma”, brinca. “Tudo que eu faço é coisa que eu vejo lá no Cariri mesmo. O cenário representa uma praça de cidade pequena e eu quis homenagear os grandes Mestres da Cultura do Cariri, principalmente as Mestras mulheres por quem eu tenho grande admiração”, completa. 

No projeto, junto à Jesus, Maria e José estão as mestras Josenir Lacerda, Zulene Galdino e Maria de Tiê; os mestres Espedito Seleiro e Francorli; o Mateu, um boi e um jaraguá, símbolos do Reisado, representando o pastor e seus animais; a Casa Ucá, ponto de cultura caririense; e o próprio Boni, tocando sanfona em frente à Oficina da Arte, seu ateliê.

“Geralmente, eu fazia peças menores, e essa, em relação ao que geralmente faço, é muito grande. Nunca tinha usado essa temática, era sempre algo mais amplo, mas esse ano quis homenagear o Cariri e as pessoas da cultura do Cariri”, destaca.

Concurso de Presépios Artesanais impulsiona produção cearense

Os projetos de Lusy Lacerda e Boni Belarmino foram dois dos vencedores, na última sexta-feira (22), da 27ª edição do Concurso de Presépio Artesanal do Estado, realizado pela Central de Artesanato do Ceará (CeArt). Ao todo, foram inscritos 42 projetos, contemplando diversas tipologias, cidades e regiões cearenses.

O vencedor do concurso foi o projeto de Boni, que utilizou a já conhecida técnica de madeira pintada para retratar o Cariri de forma original e encantadora. Os artesãos Elisvaldo Teixeira e Lusy Lacerda ocuparam o segundo e o terceiro lugares, respectivamente, com projetos detalhistas feitos à base de cera, massa, gesso e parafina, destacando outra tipologia tradicional da região. 

Já os artesãos Din Alves e José Wilson Tavares, que também trabalharam com madeira, ficaram no quarto e quinto lugares da competição. Alguns dos projetos que participaram do concurso estão à venda na Galeria Mestre Noza, loja da CeArt, na Praça Luiza Távora.

Vencedor do concurso pela terceira vez, Boni Belarmino destacou a “extrema importância” do concurso para a divulgação do artesanato cearense. “É uma coisa que eu só vejo acontecer aqui no Ceará, um concurso que inspira os artesãos, que dá vontade de trabalhar cada vez mais. Fiz o desse ano e já estou querendo pensar o que é que vou fazer no ano que vem”, comenta, animado.

Já Lusy Lacerda, que ocupou o 3º lugar do top 5, destaca o orgulho de participar desde as primeiras edições do concurso – e a alegria de poder pensar em um projeto autoral que tem um foco além das vendas. “Foge completamente daquele trabalho que o artesão faz durante o ano inteiro. É para extravasar a arte, porque às vezes a gente trabalha de forma muito mecânica. Então, é uma oportunidade de dar vazão à criatividade e ampliar mais esse espaço criativo”, pontua.

A coordenadora da CeArt, Germana Mourão, destaca que o concurso tem como objetivo demonstrar que o Natal é, também, uma festa cearense, com raízes fortes no Nordeste – não é preciso, portanto, recorrer a elementos “americanizados e europeus” para celebrá-la.

“Quando você vê as características desses presépios, você vê que as pessoas se manifestaram culturalmente e que trouxeram os nossos personagens para essa realidade do nascimento de Cristo, que é muito simbólico no mundo inteiro”, explica. “Aqui, os artesãos realmente exploram outro lado da criatividade deles, de uma forma muito honesta, uma coisa muito íntima, muito profunda”, completa.

Germana conta que, além das premiações em dinheiro para os vencedores do concurso, há interesse da CeArt de adquirir alguns dos presépios para manter no acervo da Central, como forma de valorizar o trabalho dos artesãos cearenses. Por enquanto, alguns dos projetos inscritos no concurso seguem à venda na Galeria Mestre Noza, na Praça Luíza Távora, na Aldeota.