Arte tumular transforma cemitério de Fortaleza em museu a céu aberto

Cemitério São João Batista, o maior da Capital, tem histórias de vida contadas em sepulturas que reproduzem movimentos artísticos e marcadores sociais

“Querido, não chores”. “Mamãe, V. cria minha filhinha?”. “P. Lumesi, a que horas eu morro?”. As frases esculpidas na lápide de Arina Castello Branco, falecida em 1908, são as últimas proferidas pela adolescente de 16 anos, que morreu em trabalho de parto. O monumento, idealizado pelo esposo de Arina, Odorico, está localizado no Cemitério São João Batista, no Centro de Fortaleza, o maior e mais antigo em atividade da Capital

Construído em formato de obelisco, com uma cruz e uma âncora no cume, o túmulo ressalta, além dos dias de nascimento e morte de Arina, a data em que a jovem casou, destacando o que era o ponto mais importante da vida de uma mulher na época.

No gradeado que protege o jazigo, o pedido para que respeitem "os ossos de uma santa" ressalta a vontade da família de perpetuá-la como uma mulher cristã "de família". Histórias como as de Arina, contadas e eternizadas por meio de sepulturas, são a essência da arte tumular

Também conhecida como arte funerária ou arte cemiterial, a arte tumular costuma acompanhar as expressões e estilos artísticos que estão em destaque no período em que as peças são feitas. Ainda mais do que hoje, no passado os túmulos eram marcadores sociais, fazendo com que se destaquem, no museu a céu aberto, as histórias das famílias mais ricas das cidades.

No São João Batista, por exemplo, os túmulos das famílias de classes sociais abastadas ocupam a primeira quadra do cemitério, perto da administração, e valeriam muitos milhares de reais hoje em dia, conta Layane Gadelha, pesquisadora da necrópole. São, em maioria, obras construídas no século 19 e na metade do século 20, e remontam aos estilos Neoclássico e Neogótico.

No primeiro, “há uma revisitação da Grécia e da Roma antigas, com estátuas, vestes esvoaçantes e colunas. Já no neogótico, todas as estátuas em volta estão com um semblante mais triste, há uma visão diferente da morte”, explica. A diferença também está presente no formato das obras; ora quadradas e robustas, ora pontudas e arqueadas. 

Arte tumular é um concentrado dos anos: de vários estilos, de vários tempos, das pessoas que foram fazendo seus jazigos para ostentar, para representar, para denunciar e para mostrar quem elas eram em vida
Layane Gadelha
pesquisadora da necrópole

Ao andar pelas ruas do cemitério, é possível encontrar ainda túmulos inspirados no Barroco e na Art Nouveau. Atualmente, porém, é raro que as famílias – mesmo as mais ricas – optem por monumentos suntuosos. Expressando também uma higienização da relação dos humanos com a morte, os túmulos são cada vez mais minimalistas.

"A moda agora é o porcelanato. Tem jazigo que parece um rack", brinca Layane. "Hoje as pessoas não querem ostentar, elas querem praticidade".

Obras vinham de outros países

A arte tumular presente na parte histórica do cemitério foi muito influenciada pela Belle Époque, quando a França era a maior referência mundial, da moda à política. "Fortaleza foi muito influenciada nas praças, nas roupas e na arte tumular também. Na época, o que estava em voga na França era o neoclássico", explica Layane Gadelha.

Muitos dos jazigos mais antigos do São João Batista foram construídos com peças trazidas em navios de países europeus e até do Egito, como no caso do túmulo de Caio Prado, ex-presidente das províncias de Alagoas (1887-1888) e do Ceará (1888-1889).

15 mil
Quase 15 mil túmulos compõem a necrópole, entre jazigos e gavetas

A sepultura de Prado, aliás, é das mais famosas e visitadas da necrópole. Nela, uma coluna erguida em pedra está quebrada no ponto mais alto, como se tivesse sido atingida por um raio. Para Layane Gadelha, ela foi construída propositalmente dessa forma para simbolizar que o pilar daquela família tinha sido destruído após a morte do patriarca.

Outras personalidades cujos feitos em vida construíram parte da história do Ceará e do Brasil tiveram o São João Batista como última morada. Ali estão sepultados, em túmulos cheios de simbologia, Frei Tito, Virgílio Távora, Antônio Sampaio (General Sampaio), Guilherme Chambly Studart (Barão de Studart), José Francisco da Silva Albano (Barão de Aratanha) e Plácido de Carvalho, entre muitos outros. 

Projeto de necroturismo

No início de nossa visita ao Cemitério São João Batista, um grupo de alunos do 2º ano de uma escola estadual localizada na Capital saía do campo santo. O passeio fazia parte de um tour pelo centro histórico de Fortaleza, mas foi abreviado pela chegada de um carro funerário e, em seguida, um pequeno grupo de pessoas que acompanhava o cortejo.

A visita não foi possível em sua completude, no entanto, por outro motivo: não havia ninguém para guiar o agrupamento escolar por ali. Diferentemente de outros países, como Argentina (lar do Cemitério da Recoleta) e França (e seu famoso Cemitério Père-Lachaise), o Brasil não tem tradição no chamado necroturismo, talvez porque “o brasileiro é muito religioso”, considera Layane Gadelha.

Em 2024, porém, isso pode começar a mudar no Ceará. A Santa Casa da Misericórdia de Fortaleza tem conduzido um projeto que visa tornar o Cemitério São João Batista um “polo cultural”, segundo Lana Souza, responsável pelo escritório do hospital filantrópico, que gere o campo santo.

“Vamos aproveitar essa grande tendência de revitalização do Centro, passando pela Antiga Alfândega, o local onde hoje é a Sefaz, pela Estação das Artes e culminando no cemitério”, explica Lana. 

A ideia é atrair, principalmente, escolas e pesquisadores. “Todas as ruas de Fortaleza estão lá: Frei Tito, Nogueira Acioli, Senador Virgílio Távora. Cada mausoléu daquele é um pouco da história desse grande patrimônio”, completa.

A primeira etapa do plano, de manutenção predial, deve ser concluída ainda este ano. A partir do ano que vem, a expectativa é conseguir novas parcerias públicas e privadas para que o projeto seja concluído, com início de visitas guiadas e outras atividades a partir do segundo semestre.

A importância da arte tumular

Ainda que muitas pessoas considerem os cemitérios lugares sombrios e tristes devido às perdas de entes queridos, o psicólogo e tanatólogo Erasmo Ruiz acredita que é essencial ressignificar essa relação. Primeiro, pela importância histórica desses espaços.

"Eles expressam muito as compreensões que as civilizações tiveram do sagrado. As maiores estruturas consagradas pela história, as pirâmides, em última instância são o quê? Monumentos funerários", destaca Erasmo, que também é professor da Universidade Estadual do Ceará (Uece). Como parte do projeto pedagógico dos cursos em que ensina, ele leva os alunos para que eles aprendam a ter novos olhares sobre a vida e a morte.

É esse outro aspecto que os cemitérios e a arte tumular possuem. Segundo Ruiz, eles nos fazem "aprender a morrer". "Não no sentido prático, claro, mas aprender a lidar com a morte é uma forma de potencializar a sua existência, porque você entende que ela é efêmera".