'Açúcar' estreia nos cinemas e discute a herança escravista brasileira

Produção é escrita e dirigida por Renata Pinheiro e Sérgio Oliveira. No domingo (2/02), Cinema do Dragão terá sessão especial com participação do diretor Sérgio Oliveira

A primeira ideia do filme "Açúcar" surgiu por conta de um sonho. Nele, recorda a diretora e roteirista Renata Pinheiro, um barco a vela percorre o oceano. No lugar de águas salgadas e furiosas, a embarcação singra por um mar feito de canaviais. Apenas gaivotas testemunhavam o ritmo lento daquele transporte. No dia seguinte, as cenas foram cuidadosamente descritas para o parceiro Sérgio Oliveira, também cineasta, produtor e criador de roteiros.

O casal pernambucano, dono de longa contribuição no cenário audiovisual brasileiro, decifrou os códigos contidos naquela visão. "Percebemos que é uma imagem muito reveladora da fundação do Brasil. Os colonizadores vieram pelo oceano. Tanto eles como grande parte da nossa formação cultural. Os africanos foram forçados a vir pra cá por conta do açúcar", descreve Renata.

A partir daquela construção visual tão repleta de poesia, os realizadores edificaram uma obra capaz de observar a herança escravista brasileira. Produção independente, rodada durante 13 dias de 2014 na Zona da Mata nordestina, "Açúcar" chega às salas de cinema do País nessa quinta-feira (30). No domingo (2/02), o público cearense acompanha uma sessão especial com a presença de Sérgio Oliveira. O encontro acontece às 19h30, no Cinema do Dragão.

"É um barco a vela, sobre o mar de cana-de-açúcar. A Zona da Mata é o primeiro lugar do Brasil em que acontece essa cultura da cana. E com ela os povos escravizados. Numa só imagem você tem a criação do Brasil. Tem também a presença da 'Senhora de Engenho', um personagem bastante romantizado em nossa literatura", aponta Sérgio. Desconstruir tais simbologias e resgatar episódios tão dolorosos da história era preciso.

Em "Açúcar", Maria Bethânia (Maeve Jinkings) volta a morar na antiga propriedade da família. Fincada na Zona da Mata, aquela fazenda abrigou o "Engenho Wanderley". Os tempos de riqueza advinda da produção de açúcar e derivados ficaram para trás. Sobraram apenas a Casa Grande e as ruínas do engenho. Naquele universo, a protagonista encara dilemas próprios ao reviver memórias. Em paralelo, os descendentes de escravos reivindicam direitos sobre a terra.

Pela segunda vez, Renata e Sérgio trabalham com Maeve Jinkings. A primeira contribuição dela foi no longa "Amor, Plástico e Barulho", dirigido por Renata e produzido por Sérgio. O elenco do novo filme ainda reúne Dandara de Morais, Magali Biff e Zé Maria. "Açúcar" é produção da Aroma Filmes em coprodução com a Boulevard Filmes, Canal Curta e Synapse. A distribuição é da Boulevard Filmes.

Elites

"Açúcar" invade uma história que parte dos brasileiros teima em negar. Investe na leitura contemporânea das relações entre coronéis e antigos engenhos de cana. A obra, divide Renata, aprofunda esse lugar da Zona da Mata pernambucana. Nas palavras da realizadora, uma região bastante tensa, tanto no passado como no presente. "Açúcar", assim, aborda a necessidade de refletir sobre o que fomos e que formação étnica possuímos.

"Bethânia é uma mulher que vive a necessidade de conhecer o que ela realmente é. Encontrar a própria origem. Retrata a classe média brasileira que não se enxerga bem, acha que é uma coisa, mas é outra. É tudo que não é revelado e fica escondido. É um filme duro, apesar de não ser realista, fala muitas verdades do que se passa no Brasil dos dias de hoje", defende a cineasta pernambucana.

A protagonista e boa parte de suas angústias referenciam uma elite presa às "glórias" de anos atrás. "Tempos áureos que acabaram no Século 17", alerta Sérgio. Assim, Bethânia carrega as contradições dessa "nova" senhora de engenho. Seu empreendimento é falido, de "fogo morto" (quando não se produz mais nada, informa Sérgio) e com uma mentalidade atracada a tempos de escravidão.

"Hoje, por exemplo, pelo menos em Pernambuco, o Estado foi uma potência no mundo inteiro até meados do Século 17 e ficou deficitário desde então. Mas, mesmo deficitário, virou essa elite política que ainda comanda por meio de subsídios para a cana. Ou seja, o povo fala mal que o cinema é feito de subsídio, mas a cana-de-açúcar ainda recebe até hoje", argumenta o diretor.

Amargor

O filme flerta com elementos de realismo fantástico e por adentrar a dicotomia entre donos de engenho e escravos reflete a divisão social secular na qual o Brasil ainda está preso. Bethânia carrega em si a formação crucial do povo brasileiro, e se perde em um dilema no qual nem o preto nem o branco se encaixam nela. "Existem homens e mulheres Bethânia. Que não entendem muito bem o que são e ficam à deriva", detalha Renata. "A escravidão foi quem colonizou o Brasil e da maneira mais nefasta possível. Você vê um pedaço da história indo embora e por mais infeliz que seja essa história, você tem que mostrar", arremata Sérgio.

Chegar aos cinemas é uma vitória, explica a dona do sonho responsável por toda essa reflexão cinematográfica. Filmado com recursos próprios e com uma equipe pequena de colaboradores (amigos de outros projetos), "Açúcar" é obra necessária para quem pretende desvendar as injustiças sociais oriundas de uma longa escravidão. "Tenho essa vontade de que esse filme possa atingir o espectador e que ele possa sair do filme refletindo sobre nossa sociedade", projeta Renata Pinheiro.

Crítica

Fantasmas da violência

O recado do filme "Açúcar" é atual e dos mais dolorosos. Guiada pelo casal Renata Pinheiro e Sérgio Oliveira, a obra expõe feridas de um País racista e marcado por desigualdades sociais profundas. Para elaborar tantas denúncias, os diretores e também roteiristas municiam o espectador de construções visuais poéticas e planos de câmera contemplativos. As sutis revelações da trama acompanham o reencontro de Bethânia (Maeve Jinkins) com o Engenho Wanderley. Sinônimo de riqueza e ostentação daquela abastada família, a Casa Grande é o último refúgio de uma era marcada pela dor da escravidão.

A decadência da propriedade contrasta com a alegria e busca por melhores dias dos descendentes diretos daquele povo escravizado. O estranhamento e a postura autoritária da protagonista remontam à farta parcela da sociedade brasileira que ainda teima em negar um passado tão vergonhoso. A Casa Grande e as ruínas, sejam do engenho ou da senzala, são feridas escancaradas.

O estado mental da protagonista acompanha as muitas simbologias envolvidas no jogo cênico de "Açúcar". As reais intenções de Bethânia naquele lugar são confusas e nada explícitas. Maeve entrega facetas de uma mulher amargurada e pouco resolvida com as escolhas ao longo da vida. Bethânia parece buscar algum tipo de identidade ou rosto nesse reencontro. Algo violentamente reprimido emoldura o clima de mistério ao longo da produção.

Criaturas fantasmagóricas cercam a protagonista. A vegetação invade o que sobrou daquela fazenda. O verde canavial, retratado como uma espécie de oceano afirma o desejo da própria natureza em enterrar aquele passado de dor e injustiça. Porém, o universo dos homens poderosos quer outras escolhas. Integrantes da família Wanderley estão dispostos a retomar os dias de exploração. Branca (Magali Biff) lidera tais objetivos. Cruel e dissimulada, a madrinha de Bethânia é o contraponto ético no futuro que a protagonista necessita construir.

"Açúcar" entrega uma realidade assustadora. Se permite usar de elementos do horror e do cinema fantástico para discutir temas dolorosos. Porém, quando o caos irrompe na trama e as fronteiras do realismo são embaralhadas, fica a impressão de que faltou um pouco mais de tempo de tela para desenvolver melhor a conclusão daquele universo. A queda ou ascensão de Bethânia deixam o gosto amargo da revolta.