'A palavra que resta', de Stênio Gardel, e a força da carta que guarda uma vida

Romance de estreia do escritor cearense é lançado nesta segunda-feira (19), com acurado olhar sobre o amor e a condição humana

Todo acontecimento detém caligrafia própria. Por vezes, é garrancho, trecho mal iluminado e incompreensível, traçado na pressa das horas. Em outros, as linhas estão perfeitamente organizadas e a curva das letras irrompe magia. No correr da existência, é fácil saber como seria o resultado de uma carta escrita pelo tempo.

A peleja reside no fato de que, no próprio decurso da vida, há tantas pessoas sem mínima condição de fazer essa leitura, essa escrita – olhos atentos, unindo verbo com verbo e formando sentimento. Os motivos são vários. No Brasil, 11 milhões de pessoas, conforme dados da mais recente Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad) Contínua Educação, divulgados no ano passado, não sabem ler nem escrever. 

Raimundo Gaudêncio de Freitas integra essa estatística. Mas não quer mais pertencer a ela. Aos 71 anos, ele decide aprender a singrar pelos vocábulos. Colocar as sentenças para fora “porque dentro elas alvoroçavam a cabeça, engasgavam a goela”. É desejo antigo e que se conecta a uma carta escrita há mais de 50 anos, disparadora de memórias tão fortes que não merece permanecer intacta. Haverá de transbordar.

Com esse enredo tão delicado quanto denso de perspectivas, Stênio Gardel estreia no gênero romance com “A palavra que resta”. O livro, disponível para o público nesta segunda-feira (19) pela Companhia das Letras, ganha live de lançamento na terça (20), a partir das 19h, no perfil do facebook e no canal do YouTube da editora.

Na ocasião, Stênio conversará com a escritora Socorro Acioli, que acompanhou todo o processo de feitura da obra, sobre alguns dos detalhes mais importantes da trama. “Vamos falar sobre o percurso do livro – a escrita aconteceu durante os Ateliês Narrativos da Socorro – um pouco sobre minha vida, sobre a história do romance e o momento como um todo. Vai ser bem especial”, adianta o autor.

Emaranhado de questões

O desconhecer das palavras pelo protagonista é ponto de partida para uma pluralidade de horizontes. Na juventude, junto à lida do campo, Raimundo se apaixona por Cícero e ambos passam a nutrir um amor que logo é descoberto pelos familiares. A brutal forma como os parentes reagem ao sentimento dos dois traça, já ali, a cartografia não somente do preconceito – ferida de um machismo onipresente e feroz – como também do silêncio. 

Não à toa, antes de se separarem devido à sufocante conjuntura instaurada, Cícero escreve uma carta para Raimundo. É dessa forma que a correspondência passa a atravessar toda a trama, enveredando por percursos bastante íntimos e de poderosa envergadura social.

Stênio é hábil em amplos aspectos ao alicerçar essa estrutura narrativa, a começar pela forma como nomeia os personagens. Em determinado instante, por exemplo, enquanto aprende o beabá, Raimundo comenta que o nome da professora é fácil de pôr no papel. Chama-se Ana. 

“A escolha dos nomes dos personagens é sempre um momento importante e também divertido no processo de escrita. Procurei nomes que dissessem alguma coisa para além do nome em si”, explica o escritor. “O Raimundo, como todos nós, é um mundo inteiro, então gostei que ‘mundo’ estivesse no nome dele. Além disso, possui também ‘imundo’, que é uma palavra significativa para a história dele”.

À medida que a trama avança e outras figuras despontam no front, deparamo-nos ainda com Damião, Caetana, Marcinha, Alex, Creide, Suzzanný. Esta, inclusive, é uma das criações mais interessantes de Stênio, uma travesti que, em dado instante, conhece Raimundo e passa a ser sua amiga, dividindo com ele algumas das passagens mais profundas do livro. “Escolhi 'Suzzanný' porque queria um nome diferente, se possível único, como a personagem”, diz o literato.

Dividida em quatro partes, boa parte da breve história é narrada pelo próprio Raimundo, enquanto ele não sabe ler ou está no processo de aprendizagem. É o que explica a forte presença da oralidade no romance, um fator que, segundo Stênio, permite essa aproximação maior com o protagonista. 

“Em termos de texto, e aqui entro nos diálogos, a questão era buscar essa oralidade sem parecer caricato. Cuidado na escolha de vocábulos, na conexão de orações, no uso de alguns regionalismos, entre outros elementos, contribuíram para essa construção”, dimensiona.

Múltiplo narrar

Outro aspecto bastante relevante na história é o fluxo do narrar – por vezes, desenfreado, entremeando várias vozes e pensamentos, sobretudo de Raimundo; por vezes, assumindo um tom convencional. Mudar de um narrador para outro, conforme Stênio, permitiu maior aproximação ou distanciamento dos personagens, intercalando cenas distantes no tempo ou no espaço narrativo, por exemplo. 

O rigor foi necessário para não deixar que essas alternâncias influenciassem na compreensão do texto, principalmente porque este também borra as fronteiras entre passado, presente e futuro, imergindo a audiência em uma vastidão de detalhes.

“A estrutura não-linear foi planejada, sabia dessas idas e vindas no tempo desde o começo. Na verdade, foi escolha. Gosto de livros assim, envolvem mais, têm mais enigma, mais suspense”.
Stênio Gardel
Escritor

“Por outro lado, a forma como essas idas e vindas surgiram no texto – às vezes, por exemplo, com inserções no mesmo capítulo ou parágrafo – teve uma dose de espontaneidade, apareceram durante a escrita em si”, completa o autor.

Versando sobre amor, identidade, aceitação, as tantas violências e exclusões sociais, além de se constituir como um retrato do Brasil profundo – distante das capitais e, mesmo quando no contexto urbano, atento às margens – “A palavra que resta” também é engenhosamente costurado por meio de um olhar tão terno quanto doloroso, que não se limita a categorizações. Foge, assim, da tarja de “literatura gay” ou “romance de nicho” porque penetra na essência do ser. Seres múltiplos.  

A arquitetura linguística do romance é prova disso. Por entre curtos capítulos, Stênio Gardel preenche as páginas de força e ternura ao tecer uma prosa poética que evoca várias imagens – a carta, os corpos, o rio, a cruz, o cinema, o ir e o voltar. Detonadora de sofrimentos e saudades, otimiza miragens no espelho da vida. Isso porque está tudo no lugar, numa marcante sinfonia verbal, atestando o poder da palavra bem dita.

Gardel, não sem motivo, se emocionou em vários momentos quando na construção de algumas cenas – a despedida entre Raimundo e a irmã, Marcinha, confidente e amiga, é uma delas. Entre as sensações, um vigor distinto por atravessar cada uma dessas esferas. “Passar por tudo isso, mesmo a exclusão e a violência, seja na zona rural ou na zona urbana, foi enriquecedor, iluminador”, resume.

Quanto ao cuidado na polidez do texto, ele aponta ser algo vindo do gosto enquanto leitor. A literatura que mais encanta Stênio – e por isso o romance de estreia do cearense deve cumprir o mesmo percurso no público – é aquela que surpreende pela palavra, pelo uso incomum, pela imagem inesperada.

“Com isso, acredito que a história (o que se conta) ganha mais relevo. Fico feliz que em alguma medida o livro tenha isso. Houve muito cuidado e trabalho, desde a escrita, passando pela edição, preparação e revisão, sempre pensando na palavra para o texto”.

"O bom da vida é teimar"

Em pré-venda desde fevereiro, “A palavra que resta” tem recebido acalorados retornos por parte dos primeiros leitores e, segundo Stênio, se saiu bem nas vendas até o lançamento –  considerando ser ele um autor estreante.

“O legal é que cada leitor se aproxima mais de um tema ou outro, de um trecho ou outro, de um significado ou outro. Essa multiplicidade é muito positiva e rica. Então, o que posso esperar é que cada um, à sua leitura, faça sua reflexão a partir da conexão com algum dos temas”, torce.

Deverão ser muitas. Avolumando fraturas e potências, o livro dá um nó na garganta das coisas. Convoca também ao enfrentar-se e reconhecer-se parte, permitindo que a voz no peito ressoe por entre todo o corpo e a alma. É relato de coragem, premência de reinício: viver urge. “mas mesmo depois de velho, parece que a gente não quer deixar de querer, o bom da vida é teimar”.

“Em mim, vai ficar guardado o poder do sonho, da imaginação. Foi sonhando escrever literatura que pude começar a escrever literatura. Isso é gigantesco, tenho muita sorte”, conclui o escritor.

Serviço
Lançamento do livro “A palavra que resta”, de Stênio Gardel
Nesta terça-feira (20), às 19h, no perfil do facebook e no canal do YouTube da Companhia das Letras


A palavra que resta
Stênio Gardel

Companhia das Letras
2021, 152 páginas
R$ 54, 90