Médicos que prescrevem tratamentos sem embasamento científico podem ser responsabilizados

Autonomia do médico tem limites e deve respeitar ética da profissão e conhecimentos científicos, alerta advogado

Profissionais da medicina têm autonomia para prescrever tratamentos que acharem mais adequados para o paciente. No entanto, é necessário que o médico procure embasamento científico para tomar as decisões. Caso fira a ética da profissão, passe tratamentos com comprovação de ineficácia e cause danos à saúde do paciente, ele pode ser punido administrativa, civil e até criminalmente. 

De acordo com o promotor de Justiça e coordenador do Centro de Apoio Operacional de Defesa da Saúde do Ministério Público do Ceará (MPCE), Eneas Romero, a responsabilização administrativa pode resultar em uma suspensão ou até cassação do registro profissional “se houver elementos suficientes para uma verificação de que houve um desrespeito completo às regras”. 

Um processo civil pode ser instaurado a partir da denúncia de um paciente ou sua família que se sinta lesado pelas condutas do profissional. Já a responsabilização criminal pode acontecer quando o tratamento prescrito indevidamente causa morte ou lesão grave.

Ainda há a possibilidade de um médico que não só receita individualmente o tratamento ineficaz, como também divulga por meio de redes sociais ou veículos midiáticos, sofrer penalizações.

Nesse caso ele pode inclusive sofrer uma responsabilização por dano moral coletivo, que cabe ao Ministério Público também ingressar com esse tipo de ação, porque ele não está violando a saúde de apenas uma pessoa, mas da coletividade”
Eneas Romero
Promotor de Justiça

Denúncias podem ser feitas pela Defensoria Pública, por meio de advogados particulares ou até mesmo diretamente nos Conselhos Regionais de Medicina. 

Autonomia do médico tem limites

O médico tem autonomia para escolher tratamentos, de acordo com o advogado e membro da Comissão de Saúde da OAB-CE Lucas Perdigão. Além disso, o advogado explica que o Conselho Federal de Medicina permite o uso “off-label” de medicamentos. Esse uso permite que medicamentos aprovados para uma doença sejam utilizados para outras. 

No entanto, o promotor chama atenção para os limites da autonomia do médico. “A clínica é soberana, o médico decide, mas decide segundo o conhecimento científico acumulado, e aí ele vê qual conduta é melhor para aquele paciente. Mas não é também um cheque em branco em que ele pode tudo, desconsiderando todo o conhecimento científico. Se fosse assim, a medicina não seria uma ciência”, explica.

Tratamentos ineficazes para a Covid-19

Durante a pandemia, três medicamentos ficaram conhecidos como “kit covid”, mesmo sem ter eficácia garantida contra o coronavírus. A Ivermectina, a Hidroxicloroquina e a Azitromicina são remédios aprovados pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), mas que servem para o tratamento de outras doenças. Nenhum deles tem capacidade de curar o paciente de Covid-19. 

Especialistas que compõem o Comitê Extraordinário de Monitoramento da Covid-19, liderado pela Associação Médica Brasileira (AMB), lançaram um boletim em março de 2021 informando sobre a ineficácia do uso desses medicamentos para pacientes infectados pelo Sars-Cov-2. 

"Não possuem eficácia científica comprovada de benefício no tratamento ou prevenção da COVID-19, quer seja na prevenção, na fase inicial ou nas fases avançadas dessa doença, sendo que, portanto, a utilização desses fármacos deve ser banida", diz o boletim. 

No início da pandemia ainda não existiam tantas evidências contra esses medicamentos. No entanto, com o passar do tempo, mais estudos provaram não só que os remédios não ajudavam no quadro clínico de pacientes com a doença como poderiam causar danos.

“Na medida que a doença vai evoluindo e que o conhecimento científico acumulado sobre a doença vai aumentando e se começam a formar evidências mais sólidas sobre o que dá certo e o que não dá certo, o médico vai ficando mais vinculado ao que as evidências científicas dizem”, diz Eneas.

Consentimento do paciente não isenta profissional

Mesmo com o consentimento do paciente ou pedido que parta dele pelo tratamento ineficaz, o médico ainda pode ser responsabilizado. “A prescrição é ato exclusivo do médico, quem tem que avaliar os riscos é ele e não o paciente. Então, ele tem que avaliar se aquele medicamento de fato é necessário e é adequado”, afirma o promotor. 

O Governo Federal defendeu o uso dos medicamentos do "kit covid" para pacientes com Covid-19. Apesar de ter retirado a recomendação dos sites oficiais, ainda é possível ver um Termo de Ciência e Consentimento disponibilizado para que o paciente possa aceitar esse tipo de tratamento.

“O documento pode contribuir para o convencimento do juiz, porém não tem caráter determinante na apuração da responsabilidade médica pelo magistrado”, ressalta Lucas.