Fiocruz terá de arcar com os eventuais danos da vacina de Covid-19

A condição foi imposta pelo laboratório AstraZeneca, parceiro no desenvolvimento da vacina junto com Universidade de Oxford (Reino Unido)

Escrito por Constança Rezende/Folhapress ,
Esta é uma imagem da vacina de Oxford
Legenda: Fiocruz terá de arcar com os eventuais danos da vacina de Covid-19 desenvolvida pela Universidade de Oxford
Foto: Divulgação

A Fiocruz (Fundação Oswaldo Cruz) vai ter que arcar com todos os eventuais danos decorrentes do uso ou da administração no Brasil da vacina para a Covid-19 que é desenvolvida pela Universidade de Oxford (Reino Unido). O laboratório AstraZeneca, que produzirá a imunização, ficará isento de responsabilidades.

As condições foram impostas pelo laboratório para a assinatura do contrato. A informação consta de parecer da Procuradoria Federal junto à Fiocruz sobre o acordo feito com a fundação pública do governo federal.

Em setembro, a Fiocruz assinou contrato que prevê a produção de 100,4 milhões de doses da vacina e transferência de tecnologia para a produção em território nacional. A chefe da procuradoria da fundação, Deolinda Vieira Costa, afirmou, no documento do dia 5 de setembro, que a discussão das cláusulas foi "o ponto mais controverso e intenso da negociação". No entanto, era a "única opção possível para a Fiocruz".

Segundo o parecer obtido pela reportagem, a proposta inicial da Fiocruz previa reciprocidade quanto aos direitos e deveres das partes, mas a AstraZeneca não aceitou. Mesmo assim, o contrato foi assinado em 9 de setembro.

Apesar da discordância sobre a redação final do contrato, o órgão brasileiro teria aceitado os termos "tendo em vista o interesse público envolvido no acesso a tão importante produto para a saúde da população". "Dadas as circunstâncias fáticas, afigura-se que a negociação tenha chegado a um ponto intransponível e que a aceitação da imposição tenha sido a única opção possível para a Fiocruz", escreveu Costa.

Em processo que acompanha ações e gastos do Ministério da Saúde para combater a Covid-19, o TCU (Tribunal de Contas da União) destacou essas cláusulas no dia 21 de outubro "pela sua relevância". Os termos não aparecem no contrato divulgado no site da Fiocruz. Trechos e páginas foram apagados.

Segundo resolução da Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária), são eventos adversos a suspeita de reações, a ineficácia terapêutica, total ou parcial, e intoxicações. O acordo da vacina também estabelece um teto de indenização por parte da empresa, caso o contrato seja descumprido ou em caso de qualquer outra reclamação decorrente de culpa baseada no contrato.

Esse montante não poderá exceder os valores pagos pela Fiocruz à AstraZeneca. O governo federal abriu crédito extraordinário de R$ 1,9 bilhão para viabilizar a produção e a aquisição das doses da vacina pela Fiocruz.

Ainda segundo o documento, caso os resultados pretendidos da vacina não sejam total ou parcialmente atingidos, a fundação não terá direito ao reembolso de quaisquer valores pagos à AstraZeneca ou de impostos, tributos ou taxas.

Além disso, a AstraZeneca detém os direitos de produção, distribuição e comercialização do produto. A vacina desenvolvida em Oxford ainda não tem eficácia comprovada, mas é considerada uma das mais promissoras e a principal aposta do presidente Jair Bolsonaro para a imunização no Brasil.

Os testes chegaram a ser interrompidos temporariamente em todo o mundo durante a fase 3 (a última antes da aprovação) "após a identificação de uma doença neurológica grave em setembro em uma voluntária no Reino Unido. Os trabalhos foram retomados após a constatação de que a doença não tinha relação com a vacina.

No fim de outubro, um voluntário do teste dessa vacina no Brasil morreu após complicações de Covid-19, mas a Anvisa constatou que o paciente estava no grupo de controle, que não recebe a imunização.

Não houve licitação para a escolha da AstraZeneca. Segundo relatório do TCU, a Fiocruz disse que não realizou chamamento dos interessados por meio de edital "pois atrasaria a produção e a disponibilização da vacina, agravando a situação de emergência".

A consulta aos potenciais contratados teria sido realizada com base nos trabalhos de prospecção realizados por Bio-Manguinhos, unidade da fundação responsável pela pesquisa, inovação e produção de vacinas.

O órgão afirmou que conversou com diversas instituições e assinou oito acordos de confidencialidade. Segundo a Fiocruz, a AstraZeneca foi a que mais atendeu os requisitos avaliados.

A Fiocruz disse à reportagem que as cláusulas sobre a indenização por parte da fundação se referem a acordos de encomenda tecnológica e que sua definição foi feita com base em pareceres técnicos, considerando a emergência sanitária.

"Por tratar-se de um produto em desenvolvimento, o risco tecnológico é uma premissa de contratos de encomenda tecnológica. Portanto, o ônus inerente ao risco é de responsabilidade do contratante, como está ocorrendo em vários países em todo mundo", disse em nota.
Já sobre as informações sigilosas do contrato, a Fiocruz afirmou que elas são previstas por lei e comuns nesse tipo de acordo. Também disse que o relatório do TCU está em análise pelas áreas técnicas responsáveis para seguimento de quaisquer recomendações que tenham sido feitas pelo tribunal.

Questionada, a AstraZeneca não respondeu sobre os motivos das exigências das cláusulas. O laboratório afirmou apenas que o acordo "prevê a compra de 100,4 milhões de doses de ingrediente ativo para a produção da vacina contra Covid-19, sob risco, pelo governo federal brasileiro, além de uma licença à Fiocruz para a produção, distribuição e comercialização da potencial vacina".

"O compromisso e esforço da AstraZeneca é tornar a vacina acessível em todo o mundo, de maneira justa e igualitária, sem lucro na pandemia."
A empresa afirmou também que "todo acordo segue a Lei da Transparência no Brasil".

Em entrevista à agência Reuters em julho, o executivo da empresa Ruud Dobber declarou que o laboratório está protegido de processos por efeitos colaterais da vacina em contratos firmados em diversos países. Segundo ele, "para a maioria dos países, é aceitável assumir esse risco, porque é de interesse nacional".

 

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