O Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul (TJRS) decidiu, nessa quarta-feira (3), anular o júri que condenou os quatro réus do incêndio na boate Kiss após o julgamento de recursos da defesa.
Na ocasião, o placar terminou em dois votos a um. O relator, desembargador Manuel José Martinez Lucas, foi o único que votou contra a tese dos advogados dos condenados. Ainda cabem recursos. Um novo júri deve ser marcado.
A defesa solicitou que a duração das penas seja revista, além de alegar nulidades no processo e na solenidade, considerando que a decisão do júri na condenação "não se ateve aos fatos".
Para o professor da Faculdade de Direito de Santa Maria (Fadisma), Mauro Stürmer, o resultado do julgamento dessa quarta-feira faz parte da continuidade do processo.
"Houve o júri, que foi a primeira fase, e agora foram analisados os recursos da defesa, que configuram uma continuidade do julgamento, e não uma reversão. Em hipótese alguma os réus poderiam ser absolvidos nessa etapa, pois prevalece a soberania do veredito dos sete jurados", detalhou ao portal G1.
"Poderiam acontecer três coisas: a manutenção da sentença inalterada, a redução das penas ou a anulação por força de algum vício processual. Houve um entendimento pela terceira hipótese", continuou.
Os réus são Elissandro Callegaro Spohr e Mauro Londero Hoffmann, sócios da casa noturna, Marcelo de Jesus dos Santos, da Banda Gurizada Fandangueira, e Luciano Bonilha Leão, auxiliar do grupo. Eles estão presos e foram condenados no dia 10 de dezembro de 2021.
As penas deles são as seguintes:
- Elissandro Callegaro Spohr: 22 anos e 6 meses
- Mauro Londero Hoffmann: 19 anos e 6 meses
- Marcelo de Jesus dos Santos: 18 anos
- Luciano Bonilha Leão: 18 anos
Argumentos da defesa
Ao todo, os advogados dos réus apresentaram 19 pedidos de nulidade. O relator, desembargador Manuel José Martinez Luca, desconsiderou todas as solicitações, mas foi vencido pelos votos dos outros dois magistrados, José Conrado Kurtz de Souza e Jayme Weingartner Neto.
Entre os principais argumentos da defesa considerados pelos juristas estão:
- Escolha dos jurados após três sorteios, sendo que o rito estipula apenas um;
- O fato do juiz Orlando Faccini Neto ter conversado em particular com os jurados, sem a presença de representantes do Ministério Público ou da defesa;
- O magistrado ter questionado os jurados sobre questões ausentes do processo;
- O silêncio dos réus, uma garantia constitucional, ter sido mencionado como argumento aos jurados pelo assistente de acusação;
- O uso de uma maquete em 3D da Boate Kiss, anexada aos autos sem prazo suficiente para ser analisada pelas defesas.
'Quebra da paridade'
No julgamento, um dos desembargadores favoráveis a anulação empregou o termo "quebra da paridade de armas" para se referir ao caso. Segundo o advogado e professor de Direito da Universidade Franciscana de Santa Maria, Márcio de Souza Bernardes, em casos de Tribunal de Júri é garantida a plenitude da defesa, conceito mais abrangente que a ampla defesa, garantida em outros tipos de processo.
"Significa que o réu pode utilizar de todos os argumentos e instrumentos da lei para se defender. E um desses instrumentos é ser julgado por seus pares, pessoas leigas, que devem fazê-lo de forma livre, sem qualquer indução", explicou em entrevista ao G1.
Baseado na fala do especialista, fatos como a conversa entre o juiz Orlando Faccini Neto e os jurados e a menção do silêncio dos réus — algo garantido por lei — pelo assistente de acusação foram pontos considerados.
Escolha do júri
O Código de Processo Penal (CPP) prevê que o Tribunal do Júri deve ser composto por 25 indivíduos, de onde é sorteado sete deles para serem os jurados. A acusação e a defesa têm o direito de rejeitar três jurados sem justificativa e a apontar impedimentos.
No entanto, no caso do incêndio da boate Kiss, foram convocadas mais do que as 25 pessoas previstas, sendo realizados três sorteios para a formação do grupo de jurados, o que não está previso no CCP, conforme destacou o advogado e professor de processo penal da Escola de Direito da PUCRS, Felipe de Oliveira. Outro agravante é que o último sorteio aconteceu cinco dias antes da sessão do julgamento, sendo que a previsão legal é que ele ocorra entre 15 a 10 dias úteis antes da ocasião.
Maquete em 3D da boate
Outro argumento apresentado pela defesa é referente ao uso de uma maquete em 3D da casa de shows pelo Ministério Público. Feita digitalmente, ela foi inserida nos autos em um arquivo que não era facilmente aberto pela defesa, por ser salvo em um formato pesado para computadores comuns.
Quando conseguiram acessar a maquete, os advogados dos réus questionaram a verossimilhança do modelo em relação à boate, e a imagem 3D foi usada no processo, conforme os argumentos apresentados, sem haver prazo para que as defesas analisassem o conteúdo.
BOATE KISS
O incêndio que matou 242 pessoas e deixou mais 636 feridos na Boat Kiss ocorreu em 27 de janeiro de 2013 durante uma festa universitária.
Um integrante da banda Gurizada Fandangueira disparou um artefato pirotécnico e as centelhas atingiram o teto do prédio, revestido por espuma, causando um grande incêndio.
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