No último 2 de julho, uma quinta-feira, Alice, de 3 anos, acordou cheia de manchas pelo corpo e com febre. Os pais, preocupados, ligaram imediatamente para a pediatra que, pelos sintomas descritos, excluiu a possibilidade de ser Covid-19. “Nem me passou pela cabeça que pudesse ser o novo coronavírus por conta de todos os cuidados que estávamos tomando”, diz a mãe da menina, que preferiu não se identificar. “E a própria médica também não achou que fosse. Mesmo assim, resolveu pedir um exame PCR, que deu negativo.”
Pelas particularidades de sua profissão, a mãe da Alice continuava indo ao trabalho diariamente. Seguia, porém, todas as medidas de segurança preconizadas, como uso de máscara e de álcool gel. “Eu só entrava em casa depois de tirar o sapato, não tocava em nada”, conta. “Minha roupa ia para a máquina de lavar e eu, para o banho.”
> O que se sabe sobre a Covid-19 em crianças
O pai da Alice ficou em home office, isolado com a filha. E até para pedir comida em casa a família foi parcimoniosa. Eles receberam poucas refeições por delivery. Mesmo assim, seguindo todos os cuidados recomendados. “Realmente, seguimos a quarentena.”
De fato, nenhum dos dois apresentou sintoma da doença. Por isso mesmo, eles não se surpreenderam quando o PCR da filha deu negativo. Mas o estado de saúde da menina começou a se agravar, sem que ninguém conseguisse chegar a um diagnóstico. Também surgiram outros sintomas incomuns, como olhos vermelhos, barriga inchada, pés e mãos descamando e febre intermitente.
No sétimo dia consecutivo de febre, um exame de sangue revelou uma inflamação generalizada e Alice foi internada na UTI pediátrica de um hospital particular da zona oeste do Rio. Ela tinha uma síndrome inflamatória rara ligada à infecção pelo novo coronavírus.
Gravidade
Os casos confirmados de Covid-19 em crianças e adolescentes chegam, no máximo, a 3,5% do total de registros. Essa faixa etária é a menos afetada e a grande maioria das ocorrências é muito branda. Ainda assim, um pequeno número tem problemas sérios relacionados à infecção. Esses casos muito graves que, invariavelmente, acabam nas UTIs são provocados pela recém-descrita Síndrome Multissistêmica Inflamatória Pediátrica (SMIP).
Trata-se de uma reação inflamatória grave que só acomete crianças e está associada a uma resposta tardia ao Sars-CoV-2. Até agora, foram descritos pouco mais de 200 casos no mundo. A OMS e o CDC já emitiram alertas sobre esses episódios.
“A síndrome não ocorre na fase aguda da covid-19. Em geral, aparece depois e pode ocorrer mesmo em crianças que apresentaram um quadro brando da doença”, explicou a pediatra Tania Petraglia presidente do Departamento de Infectologia da Sociedade de Pediatria do Estado do Rio de Janeiro (Soperj).
Primeiros relatos
As manifestações raras da doença em crianças não foram observadas na China, onde a epidemia surgiu, no fim do no passado. Foi só em abril que médicos do Reino Unido relataram os primeiros casos. Em maio, a Sociedade Brasileira de Pediatria emitiu nota de alerta sobre a síndrome e seus riscos.
No Brasil, ainda não há números oficiais sobre a doença, mas os pediatras confirmam a ocorrência de casos como o de Alice. Somente na UTI Pediátrica do Hospital Pedro Ernesto, no Rio, referência para o tratamento da covid-19, já foram atendidas oito crianças. O hospital onde Alice ficou internada registrou outros dois casos.
Os relatos indicam a apresentação de um quadro muito parecido com o da raríssima Síndrome de Kawasaki, uma inflamação sistêmica de causa desconhecida, mais comum na Ásia. Entre os sintomas mais frequentes, febre, conjuntivite, manchas no corpo, vermelhidão na sola dos pés e na palma das mãos. A principal complicação é a ocorrência de aneurismas na artéria coronária. Se não for tratada adequadamente, a doença pode levar à morte.
Dúvidas
Os especialistas não sabem por que a síndrome só ocorre em crianças, nem por que acomete algumas e poupa outras. Um grande estudo do Instituto Nacional de Alergias e Doenças Infecciosas dos EUA está no início e vai acompanhar 6 mil crianças para tentar chegar a algumas respostas.
“Ela costuma aparecer de três a quatro semanas após o pico do coronavírus”, disse a chefe da UTI Pediátrica do Hospital Pedro Ernesto, Raquel Zeitel, presidente do Departamento de Emergências da Soperj. “Trata-se de uma resposta imunológica exacerbada, com febre persistente, sintomas abdominais, diarreia vômito, lesões cutâneas, conjuntivite. E pode evoluir para quadro semelhante a um choque, com aumento dos marcadores inflamatórios, anomalias coronarianas e disfunções cardíacas.”
Alice ficou quatro dias internada. “Como não sabíamos o estágio da evolução da doença e havia preocupação com a parte cardíaca, achamos melhor interná-la”, contou a mãe da menina. “Por 24 horas ininterruptas, ela recebeu infusão de imunoglobulina (anticorpos que agem neutralizando o patógeno). E teve os sinais vitais monitorados a cada 15 minutos.”
A infusão, que previne aneurismas coronarianos, é o tratamento padrão para a síndrome de Kawasaki. Ele vem sendo usado também nessas complicações em crianças pós-covid, juntamente com corticoides (anti-inflamatórios).
“Como se trata de uma doença que resulta em manifestações inflamatórias intensas, o tratamento inclui medicamentos para controlar esse processo e evitar comprometimento do coração”, explicou o médico Leonardo Campos, integrante do Comitê de Reumatologia da Soperj e do Hospital Antonio Pedro, em Niterói, na região metropolitana do Rio.
Alice chegou a ter febre de 40 graus, mas, depois, a inflamação cedeu, sem comprometer o coração. “Mesmo assim, nos próximos dois meses, ela vai fazer exames frequentes e, depois, uma vez por ano”, disse a mãe da menina. “Foi um susto, mas acho importante falar para que as pessoas fiquem atentas.