“Não é a caneta completa, é a venda da dose, calculada”. Assim, o nutricionista Aron Vidal, atuante em Fortaleza, anuncia nas redes sociais a comercialização do remédio Mounjaro, nome comercial da tirzepatida, substância que trata diabetes tipo 2 em adultos e promove a perda de peso. Por até R$ 1,8 mil, interessados podem supostamente adquirir doses do remédio com ele. No entanto, a comercialização fracionada de medicamentos é proibida, conforme a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), e a aquisição só deve ocorrer com receita médica.
Aprovado no ano passado pela instituição, exclusivamente para tratamento da doença caracterizada pelo excesso de açúcar no sangue, o produto ainda não é vendido no mercado nacional, mas pode ser importado através de empresas e farmácias especializadas, com a apresentação da receita médica. Lacrada, uma caixa de Mounjaro tem de duas a quatro canetas, cada uma rendendo diversas doses do fármaco.
No entanto, no serviço anunciado por Aron Vidal pelo Instagram, onde tem mais de 32 mil seguidores, o interessado em iniciar a administração do medicamento poderia adquirir a dose fracionada. Os valores por dose variam entre R$ 450 (2,5 mg) e R$ 1.800 (15 mg). “Você vem aqui, em consultório, tomar a dose comigo. Eu faço a aplicação”, afirma. “Com uma 'seringazinha' específica, lacrada, cortada na hora. Pagamento à vista”, detalha em vídeos compartilhados nos Stories no último dia 10 de outubro.
Por ser autorizado no mercado nacional, o Mounjaro já possui preços máximos de venda estipulados: de cerca de R$ 1,7 mil a mais de R$ 4 mil, dependendo da dose e da alíquota do Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS) em cada estado.
Em nota à reportagem, a Anvisa informou que a comercialização e a dispensação de medicamentos podem ser realizadas somente por drogarias e farmácias regularizadas. "A venda fora destes estabelecimentos é irregular. Serviços de saúde, como clínicas e hospitais, também podem realizar a dispensa de medicamento dentro do contexto do atendimento aos pacientes".
"O medicamento tirzepatida é sujeito à prescrição médica, assim o uso pelo paciente deve ser feito mediante avaliação prévia do profissional. Medicamentos não podem ser fracionados para a venda, salvo se tratar de embalagem especificamente destinada ao fracionamento. Pessoas físicas não estão autorizadas a comercializar medicamentos. Esta prática é irregular", conclui a agência.
Nutricionista diz que apenas divulga serviço
Ao Diário do Nordeste, o nutricionista afirmou que não vende a medicação fracionada, apenas divulga o serviço, que seria realizado por uma “clínica de médicos em Fortaleza”. “Como eu movimento a rede social, fechei essa parceria com eles”, alegou, em resposta pelo WhatsApp. Apesar da afirmação, não há sinalização de conteúdo publicitário nos materiais postados pelo profissional na plataforma.
Quando questionado sobre a exigência de apresentação de receita, o nutricionista disse desconhecer as regras sobre o tema. “Sobre os trâmites legais não tenho os detalhes sobre isso. Na verdade, eu nem sabia que precisava disso tudo”, disse.
Risco de falsificação e sem garantia de segurança
Na propaganda, o profissional não menciona a necessidade de apresentação de receita, apesar de a Anvisa estipular que a venda da medicação só seja feita com o documento. Segundo ele, o remédio é um suposto aliado para quem quer perder peso.
"Se você cumpre a dieta, você não precisa da medicação [Mounjaro], é desnecessário, se você faz a dieta 100%. Agora, se você não cumpre a dieta, essa é uma ótima medicação, é um ótimo aliado para você manter ali como 'bengala' no início do seu protocolo. [...] Tô com vários clientes de dose", detalha Aron em vídeo compartilhado nas redes sociais.
A médica endocrinologista Ana Karina Sodré, membro da Sociedade Brasileira Endocrinologia Metabologia (SBEM), destaca que o Mounjaro pode até combater a obesidade, mas não foi aprovado para este fim no Brasil. Ela também condena a venda do medicamento por serviços não oficiais, como os divulgados pelo nutricionista, pois, além de proibida, a prática não garante a segurança do paciente.
"Infelizmente o que temos visto atualmente são várias pessoas que usam várias medicações para tratamento da obesidade por conta própria, sem prescrição médica, sem avaliação médica e sem necessidade, apenas para a perda de peso estética, e, pior de tudo, no caso do Mounjaro, sem garantia de que a medicação seja verdadeira, uma vez que ela não começou a ser vendida no Brasil", explica.
A especialista detalha que entidades médicas, inclusive a SBEM, têm recebido inúmeras denúncias de venda irregular da medicação no País, sem procedência, e até mesmo sobre um grande esquema de falsificação da substância. A própria empresa farmacêutica Eli Lilly, fabricante da droga, publicou uma carta alertando sobre os riscos de adquirir o produto por canais não oficiais.
Em uma pesquisa rápida nas redes sociais, é possível encontrar outras pessoas anunciando o produto, com possibilidade, inclusive, de entrega em todo o País. Ao Diário do Nordeste, a Eli Lilly do Brasil informou que ainda não há previsão para a chegada dele ao mercado nacional.
Conforme a Anvisa, a fiscalização de casos de venda irregular da medicação cabe às vigilâncias sanitárias de estados e de municípios.
Responsável pelo controle da venda de medicamentos na Capital cearense, a Agência de Fiscalização de Fortaleza (Agefis) informa não haver denúncias contra Aron, mas reforça o entendimento do órgão federal. Ela ainda destaca que condutas ilegais podem ser denunciadas pela população pelo aplicativo Fiscalize Fortaleza, pelo telefone 156 ou pelo site oficial.
'Ozempic dos ricos'
O Diário do Nordeste apurou que ao ser contactado por um potencial cliente do serviço, Aron responderia de uma forma diferente: enviando um questionário, com perguntas sobre a rotina, e a tabela de preços das frações do Mounjaro.
Como o medicamento já está autorizado no País, a Câmara de Regulação do Mercado de Medicamentos (CMED) estabeleceu o teto de preço para ele: no máximo, de R$ 1.752,58 (embalagem com duas canetas) a R$ 4.009,25 (quatro canetas), a depender da alíquota do ICMS em cada estado e da dose. Devido ao alto valor, o Mounjaro recebeu o apelido de "Ozempic dos ricos", já que o concorrente na mesma tabela da CMED tem um preço menor: variando de R$ 1.195,29 a R$ 1.367,19.
"Tem que estar disposto [emoji de saco de dinheiro] para fazer o tratamento", alerta Aron em Storie publicado 11 de outubro.
Após ser informado que a venda fracionada é considerada irregular pela Anvisa, o profissional parou de responder à reportagem pelo WhatsApp. As novas mensagens enviadas pelo Diário do Nordeste seguiram sem retorno até a noite dessa quinta-feira (17).
Questionado, o Conselho Regional de Nutrição da 11ª Região (CRN11), no qual Aron tem registro, emitiu um parecer em que explica que "nutricionista não está habilitado para a prescrição, aplicação, fracionamento e/ou venda de medicamentos. Quanto à abordagem deste profissional no contexto da perda de peso, a sua conduta na prática e no exercício profissional devem ser focadas na promoção de uma alimentação saudável e de hábitos alimentares adequados, respeitando os limites da atuação profissional".
A assessoria de comunicação da instituição ainda explicou que o Conselho possui um canal de denúncia no site oficial, no qual qualquer pessoa, profissional da área ou não, pode realizar denúncias anônimas sobre condutas irregulares de nutricionistas.
Mounjaro exige acompanhamento médico
A endocrinologista Ana Karina Sodré frisa que a administração da tirzepatida é recomendada no Brasil somente para pessoas com diabetes tipo 2 não controlada, em especial em caso de obesidade. Mesmo sendo seguro, o uso do medicamento, assim como qualquer outro, traz contraindicações, principalmente relacionadas a cânceres de tireoide, já que, segundo a bula, pode aumentar chances de desenvolvimento da doença.
"O Mounjaro é contraindicado em pacientes com antecedente familiar ou pessoal de câncer medular de tireoide, ou neoplasia endócrina múltipla tipo 2, mulheres grávidas e mulheres que estão amamentando", explica.
"É importante que as pessoas entendam que não existe medicamento desprovido de efeito colateral. [...] Não é porque um conhecido usou uma medicação e se deu bem que a outra também ficará bem. [...] Remédio não é roupa para estar na moda e todos usarem, remédio se usa quando necessário", acrescenta.
A especialista cita alguns efeitos colaterais que a substância pode causar, como pancreatite aguda; inflamação da vesícula biliar (colecistite); hipoglicemia, principalmente em pacientes que já usam outros medicamentos para tratamento do diabetes mellitus; náuseas; vômitos; diarreia; gastroparesia grave, espécie de parada grave e abrupta do estômago; interferência na absorção de medicamentos, entre outros efeitos.
"As pessoas precisam entender que medicamento para tratamento de obesidade é medicamento. Ninguém usa remédio de pressão alta porque o vizinho usa, ainda mais remédio injetável e com uma duração de efeito prolongado, de uma semana, como a tirzepatida", finaliza.