Imagens do circuito interno da Zara analisadas pela Polícia Civil do Ceará (PC-CE) concluíram que o gerente indiciado por racismo havia atendido uma cliente sem máscara antes da entrada da delegada Ana Paula Barroso, vítima do crime. O desfecho da investigação derruba a versão do estabelecimento de que a permanência da delegada foi barrada porque ela estava sem o item de proteção.
Os registros analisados mostram que a delegada não teve o mesmo tratamento dado a outros clientes. Ana Paula foi expulsa do local instantes depois de uma consumidora ter ido à loja sem estar com a máscara. Esta cena também foi observada em outras situações onde os demais não foram retirados ou abordados para fazer o uso correto do item.
“Não se trata sobre o uso incorreto da máscara. Trata-se de racismo. Vimos outros clientes fazendo o uso incorreto da mascara e comendo. Inclusive uma delas foi atendida por Bruno Filipe. E nenhuma foi expulsa”, afirma a delegada de Defesa da Mulher de Fortaleza, Janaína Siebra.
O delegado-geral Sergio Pereira, reitera que a vítima foi impedida de estar na loja por "medida de segurança" e não pelo risco de transmissão da Covid-19. "Cai por terra esse argumento de que o que motivou entre aspas a determinação que ela se retirasse da loja foi questão sanitária. A investigação demonstrou que não. Ele foi enfático ao afirmar que a retirada da vítima foi por questões de segurança", pontuou.
A Zara Brasil respondeu, em nota, "que não teve acesso ao relatório da autoridade policial até sua divulgação nos meios de comunicação, quer manifestar que colaborará com as autoridades para esclarecer que a atuação da loja durante a pandemia Covid-19 se fundamenta na aplicação dos protocolos de proteção à saúde, já que o decreto governamental em vigor estabelece a obrigatoriedade do uso de máscaras em ambientes públicos. Qualquer outra interpretação não somente se afasta da realidade como também não reflete a política da empresa".
A Zara Brasil conta com mais de 1800 pessoas de diversas raças e etnias, identidades de gênero, orientação sexual, religião e cultura. Zara é uma empresa que não tolera nenhum tipo de discriminação e para a qual a diversidade, a multiculturalidade e o respeito são valores inerentes e inseparáveis da cultura corporativa. A Zara rechaça qualquer forma de racismo, que deve ser combatido com a máxima seriedade em todos os aspectos".
Investigação
Além das imagens, a PC-CE ouviu, ao todo, sete testemunhas, incluindo uma outra vítima de racismo negra de 27 anos, que relatou ter passado pelo mesmo constrangimento na Zara o último mês de junho.
Também foram ouvidas duas ex-funcionárias da loja que denunciaram episódios de assédio moral e procedimentos discriminatórios durante o atendimento de clientes.
A PC-CE ressaltou que o shopping colaborou prontamente com as imagens. A loja, no entanto, negou três vezes o repasse do circuito interno, o que motivou o pedido de busca e apreensão.
Código
A PC-CE descobriu que a Zara possui uma espécie de código interno para discriminar clientes "suspeitos" e ligar alerta para os funcionários. De acordo com a delegada Arlete Silveira, o aviso era feito por um funcionário através sistema de som da loja. O termo utilizado para informar a presença de suspeitos era "Zara Zerou".
"Quando chega alguém diferente, fora do perfil do consumidor da Zara, alguém chega e diz 'Zara Zerou' é como se aquela pessoa deixasse de ser um consumidor e passasse a ser suspeita dentro do estabelecimento", citou.
Nesta quarta-feira (20), a Zara enviou uma nova nota informando que "nega a existência de um suposto código para discriminar clientes".
Responsabilidade
O gerente da unidade, Bruno Filipe Simões Antônio, de 32 anos, foi indiciado por racismo com base no artigo 5º da Lei de Crimes Raciais por recusar, impedir acesso a estabelecimento comercial e negar a prestação do serviço à delegada. Conforme a Polícia Civil, a loja também poderá ser responsabilizada na esfera civil por danos morais.
Nova delegacia
Para a delegada Arlete Silveira, o "caso é um marco" porque dentro do plano de ação da Polícia Civil está prevista a criação da Delegacia de Enfrentamento à Discriminação e Intolerância Racial, Religiosa e LGBTQIA+.
"Estamos falando de racismo estrutural. É tão velado que nem sempre a vítima entende que está sofrendo uma violência racial", ponderou.
Relembre o caso
Diretora adjunta do Departamento de Proteção aos Grupos Vulneráveis (DPGV), Ana Paula Barroso foi vítima de racismo ao ser barrada na entrada da Zara. O crime ocorreu no dia 14 de setembro em uma unidade da loja em um shopping do bairro Edson Queiroz, em Fortaleza.
A delegada consumia um sorvete no momento em que chegou à loja. Um funcionário a impediu de permanecer no estabelecimento por "questões de segurança". Ela ainda questionou se a ordem teria sido motivada em função da sobremesa gelada, mas não teve retorno.
Sem resposta até então, Ana Paula saiu da loja e chamou um outro segurança e perguntou se o consumo do sorvete era um impedimento para o acesso. O homem afirmou que não e solicitou a presença do chefe de segurança do shopping.
Este acabou reconhecendo a delegada porque já havia trabalhado com ela em outra oportunidade. Ana Paula foi novamente à loja acompanhada dos dois seguranças, e o funcionário que impediu de entrar adotou uma postura defensiva justificando não ter preconceito.
"Ele já foi logo dizendo que não tinha nenhum preconceito, que tinha várias amizades gays, lésbicas e trans. Quando ele fala isso, de forma velada, já mostra que tem preconceito. Essas declarações foram dadas no BOE e ratificadas pelo chefe da segurança. Depois, ele pediu desculpa e ela saiu da loja extremamente abalada", disse Anna Nery.
A Zara foi alvo de um mandado de busca e apreensão no dia 19 de setembro após se recusar a entregar imagens do circuito interno de câmeras. Além disso, antes da representação judicial por parte da PC-CE, houve demora nos trâmites internos, como o tamanho dos arquivos.
Somente no dia 20 de setembro, seis dias após o caso, a loja emitiu nota alegando que o impedimento à delegada não foi motivado por questões raciais, mas sim pelo fato de estar sem máscara enquanto tomava o sorvete.