Uma mulher que vivia em contexto de violência doméstica e pobreza no Ceará foi absolvida de uma acusação de tentativa de homicídio contra seu ex-marido, ocorrida em 2014. O julgamento ocorreu neste mês, 10 anos após o fato e em meio a um período conturbado onde ela passou quatro meses presa longe de seu primeiro filho.
No júri, a Defensoria Pública do Estado do Ceará usou uma tese de esgotamento emocional e sobrecarga mental feminina. A defensora Michele Camelo foi responsável pelos argumentos, onde evidenciou ao tribunal a jornada da mulher.
"O processo inteiro não tem nenhuma testemunha, porque a máxima ainda é ‘em briga de marido e mulher ninguém mete a colher’. Ao final, pontuamos que ela era a vítima, conseguimos mostrar a violência sofrida por ela, a carga mental e a desigualdade de gênero dentro da família. Dessa forma, conseguimos a absolvição”, pontua a defensora.
Violência física e psicológica
O fato que levou à denúncia pelo Ministério Público do Ceará (MPCE) por tentativa de homicídio ocorreu em 2014, quando a mulher tinha 22 anos. Em uma discussão, o então casal entrou em luta corporal e ela golpeou o homem com um único golpe de faca.
Para a Defensoria, além de "legítima defesa", houve uma subsequência de fatos. Ela sofria violência doméstica e no dia do crime o seu ex-companheiro havia cortado o cabelo crespo do filho deles sem avisar, o que foi considerado pela mulher um desrespeito: "Importante pontuar que estamos falando de uma mulher negra, cujo cabelo é considerado um símbolo da sua identidade. Quando a criança voltou para o convívio materno, a mãe, muito esgotada emocionalmente, retornou à casa do pai para questionar sobre o ocorrido".
Mostrei o contexto de sobrecarga mental feminina. Estamos falando de uma mulher negra, com poucos recursos financeiros, mas que vende churrasquinho na feira para manter a família, órfã de pais, criada pelos avós também já falecidos, mãe de duas crianças de 8 e 11 anos de idade, sem rede de apoio, que precisa trabalhar e dar de conta de todas as obrigações domésticas que envolvem o cuidar. Um trabalho invisível, subestimado e desvalorizado porque é considerado natural. Fora isso, as conturbações de um relacionamento abusivo, com denúncias de violência física e psicológica.
Desafio em tribunais
A decisão desse júri contra a mulher no Ceará é considerada uma "vitória" para a Defensora Pública, por conta dos debates que o caso levanta.
“O caso de hoje fala sobre essa invisibilidade do trabalho da mulher e que precisa ser trazido aos autos judiciais. Estamos falando não só do direito formal, mas de assuntos transversais que impactam diariamente a vida de milhares de mulhere", pontua Michele Camelo.
Um relatório da ONG Think Olga mostra que 45% das mulheres brasileiras têm diagnóstico de ansiedade, depressão, síndrome do pânico ou algum outro transtorno mental. O acúmulo de tarefas profissionais e doméstica, e dívidas e sobrecargas faz com que o peso sobre elas aumente ainda mais, sobretudo quando se tem um relacionamento abusivo.