Na manhã do dia 1º de julho de 2020, a família de Mizael Fernandes da Silva, de 13 anos, vivia as primeiras horas do luto pela morte do garoto. Há exatamente um ano, os parentes já se questionavam dos porquês de policiais militares terem invadido a residência da família em Chorozinho, Região Metropolitana de Fortaleza (RMF) e disparado contra o menino que dormia. Passados 365 dias, a investigação sobre a morte de Mizael permanece em aberto.
O Ministério Público do Ceará (MPCE) alega ainda não ter apresentado denúncia sobre o caso porque o inquérito não foi finalizado. Neste meio tempo, a Delegacia de Assuntos Internos (DAI) da Controladoria Geral de Disciplina dos Órgãos de Segurança Pública e Sistema Penitenciário (CGD) chegou a finalizar o inquérito duas vezes e remeter ao Judiciário, mas pedidos de novas diligências fizeram com que a investigação fosse reaberta, ganhando novos capítulos e levando a uma descrença por parte da família que luta em busca de saber: Por que a Polícia matou Mizael?
Conforme a CGD, na última vez que o inquérito foi encaminhado à Justiça, três policiais militares foram indiciados. Um por homicídio e fraude processual,e os outros dois por fraude processual. O trio também é alvo de um processo disciplinar que apura na seara administrativa, "estando este, atualmente, em trâmite processual", disse a Controladoria.
O promotor de Justiça de Chorozinho, Antonio Forte de Souza Júnior, explica que as atuais diligências pendentes se devem a um pedido da defesa dos PMs. "A defesa pediu para outros dois policiais militares serem ouvidos e o inquérito baixou em diligências. É um caso complexo, porque são duas conclusões diversas. para garantir a ampla defesa, neste período de investigação temos que dar amplitude e plenitude a todas as versões", resumiu.
Violência policial
O sargento Enemias Barros da Silva é o PM que chegou a ser duas vezes indiciado por homicídio pela DAI. Ele e os outros dois agentes teriam interferido na cena do crime, com possível objetivo de dificultar o trabalho das autoridades na elucidação do crime. Já segundo inquérito da própria PM, os militares teriam agido em legítima defesa.
Para a pesquisadora da Rede de Observatórios da Segurança e do Laboratório de Estudos da Violência (LEV) da Universidade Federal do Ceará (UFC), Ana Letícia Lins, o 'Caso Mizael' representa um paradigma grande no Ceará em relação à questão da violência policial e se tornou espelho de como as questões desta vêm sendo tratadas pela Justiça do Estado.
"Uma coisa que nós ressaltamos muito no ano passado quando falávamos do Mizael era a necessidade de fortalecer a Delegacia de Assuntos Internos, fortalecer a Controladoria Geral de Disciplina. A gente precisa de investigação isenta, não pode ficar a mercê de um julgamento, de uma investigação feita por pares. Ou seja, outros policiais militares investigando policiais militares. Pela falta de transparência nós temos pouca informação sobre esses casos. Acho muito preocupante que a gente pela falta de transparência não consiga fazer o controle social de como esses processos estão correndo. Precisamos que caso Mizael seja investigado de forma isenta e que a gente chegue o mais rápido possível às vias de responsabilização", afirma Ana Letícia.
O 'Caso Mizael' coloca elementos muito cruéis da própria dinâmica. Nós estávamos em um momento muito crítico em relação à pandemia aqui no Ceará. O Mizael, um adolescente que estava dentro de casa, que estava dormindo e teve a casa invadida no meio da madrugada por policiais. Enquanto estamos em um momento de crise sanitária, a casa é pra ser o nosso lugar de segurança"
Antes da morte do menino de 13 anos, o sargento Enemias já respondia a outro inquérito por, supostamente, ter torturado um homem durante abordagem policial, em fevereiro de 2019. Mesmo sob suspeita de ter cometido as agressões, o policial continuava nas ruas.
Sobre a reicindência nas agressões, a pesquisadora do LEV aborda ser necessária responsabilização efetiva. "Acredito que precisamos ter um um fortalecimento e um processo mais rápido para não cair nessa reincidência. Precisamos muito saber qual é o nível de envolvimento desses policiais em práticas de corrupção, em assuntos também de violência. Precisamos ter um pouco mais de de transparência, celeridade, rapidez pra que tenhamos uma responsabilização mais efetiva e não caiamos na reincidência desses policiais envolvidos nesse crime".
Versões do fato
O processo segue em segredo de Justiça. No entanto, a reportagem apurou que o real alvo dos policiais militares na madrugada de 1º de julho de 2020 era um homem, com alguns traços físicos semelhantes aos do garoto, e que, caso fosse entregue morto à traficantes, seus matadores poderiam ser recompensados em até R$ 50 mil. A reportagem ainda apurou que o alvo da intervenção policial foi ouvido recentemente no Judiciário cearense e disse às autoridades que não tinha envolvimento com o adolescente e sequer o conhecia.
Na versão dos policiais, Mizael estava armado dentro da residência e tentou reagir contra os agentes. O laudo cadavérico feito no corpo do adolescente apontou que foi encontrada apenas uma entrada de tiro, na região próxima ao peito do jovem, que se encontrava deitado no colchão. A perícia ainda constatou não haver traços genéticos do adolescente na arma de fogo apresentada pela composição investigada.
No início deste ano, autoridades realizam reconstituição do crime. Porém, o laudo com o resultado desta diligência não foi divulgado. A Defensoria Pública do Ceará segue acompanhando o caso, mas optou por não conceder entrevista sobre o tema.