Cateano, Joelma, Fábio e Adriano. Cearenses que não se conhecem, mas têm algo em comum entre si: travaram uma longa batalha contra a Covid-19 e saíram vitoriosos após ficarem semanas - alguns deles mais de 100 dias - internados em diferentes hospitais do Estado.
Medo da morte, despedida de familiares, dias entubados, dor e superação. Essa foi a trajetória dos pacientes com mais dias internados contra a Covid-19 no Ceará. Pessoas que estiveram “cara a cara com a morte”.
Dia 5 de março de 2021. Após nove dias com sintomas leves de gripe, o policial militar Francisco Fábio Melo Lobo, de 41 anos, teve seu quadro agravado e precisou ser internado no Hospital Gonzaguinha, na cidade de Maranguape. À época, ele sentia “cansaço e falta de água”, conforme relembra.
Logo no dia seguinte, 6 de março, a saturação do oxigênio baixou, o quadro geral se agravou e Fábio precisou ser entubado. Diante da manutenção da gravidade, precisou ser transferido para o Hospital Regional do Sertão Central (HRSC), em Quixeramobim. Começava, ali, a batalha pela vida.
“Quando cheguei ao hospital [em Quixeramobim] e fui entubado, já perdi minha consciência, não lembro de nada até sair da UTI Covid”, detalha Fábio. Somente em coma, ele ficou 45 dias. Destes, 22 ele esteve entubado. Na UTI, após sair do coma, foram mais de 30 dias.
Durante todo o processo, que durou longos 101 dias – a contar do dia em que ingressou no HRSC à data em que recebeu alta médica – Fábio teve sucessivas pioras.
“Minha vida é um milagre. Tive quadro de infecção generalizada quando estive na UTI-Covid e quadro de infecção estomacal. Ficava expelindo uma secreção negra, mais de um 1 litro por dia. Foram semanas bem difíceis”, conta. Dos 101 dias internados, mais de 50 foram com nutrição parenteral. “Minha alimentação era apenas pela veia”, acrescenta.
Fábio entrou no HRSC com 102 kg e saiu da unidade hospitalar com 62 kg. Para os médicos, o caso do policial militar era um dos mais graves presentes no Hospital. “Quando cheguei em casa meu irmão me mostrou os áudios que os médicos enviavam diariamente para nossa família, eles retratam a gravidade do meu quadro, foi um milagre”, atesta Fábio.
O policial teve, ainda, paralisia dos rins e precisou fazer hemodiálise durante quase todo o período que esteve internado. Com tantas complicações, Fábio confessa ter tido, por várias vezes, medo de morrer.
“Eu fiquei cara a cara com a morte. Pensava no meu filho de 16 anos e na minha esposa. Não sabia se poderia vê-los de novo. Acordei do coma e não sabia nem qual era meu nome. Não sabia de nada. Quando fui retomando a consciência, foi neles que perguntei. Mas depois do coma, ainda vieram muitos outros dias de UTI”, descreve sua batalha contra o novo coronavírus.
No dia em que recebeu alta, Fábio diz ter testemunhado o choro dos médicos que o trataram. As lágrimas que caíam dos olhos de quem, tal qual super-herói, aprendem a suprimir seus próprios sentimentos para cuidar do próximo, externava o quão dura havia sido aquela batalha.
“Todos consideraram um milagre. A Covid quis, por várias vezes, me levar. Mas fiquei [vivo] e devo muito aos médicos e a todos envolvidos. Sem eles e sem Deus, eu não estaria aqui”, comemora.
A luta pela vida agora deu lugar à luta pela recuperação plena, o que deve ser longa. Quatro meses após receber alta médica, Fábio ainda não consegue andar sozinho. “Muita fisioterapia e paciência. Uma hora vamos superar tudo isso”, conclui.
"Cheguei a me despedir do meu filho”
A quase 330 quilômetros da cidade de Quixeramobim, o contador Adriano Soares, de 53 anos, testemunhou experiência semelhante a de Fábio. Diabético e hipertenso, ele contraiu a Covid-19 no início de fevereiro deste ano e, poucos dias depois, viu seu quadro se agravar.
“Foi tudo muito rápido”, relembra Adriano. Rapidez essa que foi inversamente proporcional aos dias em que esteve internado no Hospital Padre Cícero, em Juazeiro do Norte. Ao todo, ele ficou 27 dias internados, dos quais 11 esteve entubado.
“Fui internado dia 8 de fevereiro. Minha saturação estava muito baixa, tinha falta de ar e dormência nas pernas”, relata. Quando Adriano recebeu dos médicos a notícia de que ele seria entubado, o contador confidencia que, ali, foi como ouvir sua sentença de morte.
“Devido as minhas doenças, eu achei que não iria escapar. Tinha certeza de que não voltaria para casa. Inclusive, eu falei isso antes de ir ao hospital, disse aos meus filhos: ‘se eu for entubado, não volto mais’”. Se despedir da família, ainda em vida, foi um dos momentos mais marcantes para Adriano.
“É duro. Passa um filme na nossa cabeça. O medo de morrer é muito grande. Meu filho mais novo, de 24 anos, me acompanhou no hospital. Antes de me entubarem, me despedi dele”, conta, emocionado. Adriano é casado e tem cinco filhos. Lucas, o mais novo, esteve com o pai durante a estadia dele na unidade hospitalar.
Veio a intubação e com ela “um breu”. “Não lembro mais de nada, tudo se apagou da memória, ficou preto, como breu”. A batalha durou quase um mês, mas o inesperado aconteceu. Adriano recebeu alta médica. Mais um cearense que vencia a Covid-19, doença que já fez quase 25 mil mortes no Ceará – dentre os quais, dois amigos de trabalho de Adriano – e mais de 605 mil em todo o País.
Assim como Fábio Lobo, a batalha travada por Adriano agora está sendo em casa. “Perdei 80% de um pulmão e o outro 20%. Não sinto meu pé esquerdo e ainda sinto muita falta de ar”. Apesar das sequelas, o relato não possui tom de lamento. Adriano também se considera um vencedor.
“Só tenho a agradecer a todo mundo que orou por mim. Depois vi que a corrente foi muito forte. Sinto-me vitorioso. O que acontece agora não chega nem perto do sofrimento que passei. Fiz 60 dias de fisioterapia e, com a Graça de Deus, vou me recuperar plenamente”.
Paciente com mais longa duração no hospital
Juazeiro do Norte, terra fundada por Padre Cícero, religioso considerado santo pela fé católica nordestina, foi palco "para mais um milagre". Foi no Hospital Regional do Cariri (HRC) que o agricultor Caetano Pereira de Alencar, de 57 anos, ficou internado por 104 dias.
Dentre as unidades de saúde - pública e particular - ouvidas pelo Diário do Nordeste, este é o segundo caso mais longevo, atrás apenas de uma paciente que ficou 107 dias internadas no Hospital Regional Norte (HRN), mas pediu para não ter seu nome citado na reportagem.
Era manhã do dia 22 de maio quando Seu Caetano, "homem forte, da roça", conforme é descrito pelos familiares, deu entrada no Hospital e Maternidade São José, em Mauriti, cidade distante 64 quilômetros de Juazeiro do Norte. O filho, Cairton Sá Alencar, de 32 anos, conta que o pai ficou dez dias com sintomas gripais e se recusava a acreditar que poderia ter sido infectado pelo novo coronavírus.
"Homem da roça, ele tinha certa resistência. Sempre foi muito forte, muito bem da saúde, então pensava ser só uma gripe adquirida após o plantio de feijão", detalha o filho. No décimo dia, no entanto, o quadro piorou. O agricultor foi levado ao hospital de Mauriti e, poucas horas depois, o quadro de saúde dele se agravou: falta de ar e baixa saturação de oxigênio.
Quatro horas após ingressar na unidade, os médicos decidiram entubar o agricultor. Mais quatro horas e o diagnóstico foi de que ele precisaria ser transferido urgentemente para uma unidade de grande porte. "Ali foi o primeiro milagre. A pandemia estava no pico, era muito raro encontrar vaga de UTI, mas meu pai conseguiu. No mesmo dia surgiu uma vaga e a noite ele já estava dando entrada no [Hospitaç] Regional [do Cariri], conta Cairton.
O filho conta que os médicos do HRC "se assustaram com o estado de saúde" do agricultor e optaram por interná-lo na UTI Covid. Por lá, Seu Caetano ficou 45 dias. A médica paliativista da unidade de cuidados especiais (UCE) do Hospital Regional do Cariri (HRC), Patrícia Mauriz, relembra que o agricultor deu entrada na unidade em estado crítico.
"Era gravíssimo. Mais de 90% de comprometimento pulmonar, além de ter desenvolvido várias infecções hospitalares. Chegou acamado, sem se comunicar, sem falar, estava bastante debilitado", conta a médica. Ao longo do tratamento, Mauriz revela que Caetano recebeu tratamento multidisciplinar, contando com fonoterapia, fisioterapia e tratamento nutricional.
Foi uma grande vitória. A forma como ele chegou e depois a forma com que ele saiu nos traz grande felicidade, para toda a equipe. Foi uma vitória muito grande.
"Em casa, antes de ir para o hospital, ele falou que achava que não ia sobreviver. Eu também cheguei a pensar, mas nossa fé tinha que falar mais alto e falou. Nos reunimos em oração e demovemos essa ideia. O pensamento era sempre positivo, por mais duro que fosse o quadro dele", descreve Cairton.
Ao longo dos mais de 100 dias, foram 50 internados na UTI e 20 kg a menos. "Meu pai ficou extremamente debilitado. Foi um milagre ele ter sobrevivido. Os médicos foram incríveis e a corrente de orações que formamos foi essencial", revela o filho, ao confidenciar que este período foi o mais difícil da vida dos familiares.
"A gente que se manter forte, por mais complicado que seja. São mais de 100 dias. É muito tempo, desgastante demais. Para nós e principalmente para ele. Foi um verdadeiro milagre".
No dia 7 de setembro, Caetano recebeu alta e retornou para casa. A chegada marca o renascimento do esposo carinhoso e homem trabalhador, pai de dois filhos. "É uma data a celebrar", pontua Cairton. A lida no campo, grande paixão do agricultor, precisará esperar. Devido aos longos dias de internação, as sequelas ainda estão bem presentes na vida dele.
"Ele não consegue andar sozinho. A perna esquerda e o braço direito estão dormentes, sem força, ele quase não consegue movimentar, será preciso muito fisioterapia. Também teve considerável perda de audição, estamos fazendo exames para atestar quantos porcento ele perdeu. Mas a comunicação, em casa, tem sido feito com leitura labial", conta Cairton.
Caetano também teve danos nos rins e precisa fazer hemodiálise. "Vamos superar essa fase também. Venceremos", completa o filho que o acompanhou durante todo o processo de hospitalização. Após vencer a batalha contra a Covid-19, Cairton faz um apelo para que as pessoas sigam adotando todos os cuidados não farmacológicos e se vacinem.
"A pandemia não acabou, o vírus segue vivo. Eu rezo para que ninguém passe pelo que passamos. É muita dor e sofrimento. Peço que as pessoas se vacinem, usem máscara e álcool em gel e não aglomerem. Pelo bem das pessoas que amamos".
Nascimento e renascimento
Quando a costureira Joelma Ripardo Rodrigues, de 39 anos, deu entrada no Hospital Regional Norte (HRN), em Sobral, grávida de 8 meses, no dia 28 de março, ela não sabia que teria que batalhar duplamente: para salvar sua vida a de sua filha, que viria a se chamar Laura.
A corrida pela vida começava a se desenhar alguns dias antes. No final da gestação, Joelma começou a sentir frequentes dores de cabeça, tosse e cansaço. Pensava ela ser sintomas inerentes à gravidez. O quadro postergou por mais de uma semana até que ela resolveu fazer o exame da Covid-19. Resultado: positivo.
Assutada e "temendo pela vida da filha", foi aconselhada, por uma amiga médica, a buscar atendimento no Hospital Regional Norte. Era dia 28 de março. Sua saída, considerada um milagre pelo corpo clinico, só aconteceria 73 dias depois. Do ingresso ao agravamento do quadro de saúde foi tudo muito rápido. "Menos de dois dias", rememora.
Diante da gravidade, Joelma teria que ser entubada. Mas, esse procedimento não pode ser realizada em gestantes. "Os médicos tiveram que realizar uma cessaria de emergência", conta a costureira. A chegada da pequena Laura ao mundo, em meio a uma realidade que não fora programada pela mãe e seus familiares, ocorreu bem. O bebê passou dois dias internado para observação e depois recebeu alta. Foi para casa, e fico aos cuidados da irmã de Joelma.
Nos dias seguintes, a costureira acumulou sucessivas complicações. Teve hemorragia, insuficiência renal, tromboses, infecção no sangue e precisou fazer hemodiálise. Ao ser entubada, pensou o pior: "Achei que nunca mais veria minha família. Pensei que fosse morrer".
Joelma passou 11 dias entubada e, depois, mais 12 em coma. O quadro era tão grave que, segundo ela, chegou a ser "desacreditada pelos médicos". "Eles disseram ao meu marido que não havia muito o que ser feito por mim. Mas, Deus, tinha sido muito a fazer, e Ele fez. Eu sobrevivi", conta, chorando.
Essa reportagem reúne quatro personagens que, além de terem em comum o fato de vencerem a Covid-19, acreditam ser 'obra de um milagre divino'', assim como relatou Joelma.
"Viver, aliás, sobreviver já foi um milagre. Mas além disso, Deus permitiu que minha filha nascesse bem e com saúde e, minha recuperação, está sendo acima das expectativas. Os médicos disseram que eu iria demorar muito tempo até voltar a falar e andar. Deus quis o contrário. Já sai do hospital dando alguns lentos passos e já conseguia falar algumas palavras", testemunha.
Hoje a costureira luta contra as várias sequelas. Perdeu a audição do lado direito e sofre com tromboses, além de "tomar vários remédios ao longo do dia". Nada disso, porém, foi maior do que a alegria de, após 73 dias, abraçar sua filha, Laura.
"Foi emocionante", diz, chorando mais uma vez. "Poder rever meu esposo, meus dois filhos e abraçar, pela primeira vez, minha terceira filha, só possível através da permissão de Deus. É uma emoção muito grande", conclui.
O cuidado pós-Covid que conta
“Para muitas pessoas acometidas pela Covid, a saída do hospital não é o último passo, mas o início de uma segunda jornada de tratamentos. Nessa hora é muito importante atender as recomendações médicas”, explica a fisioterapeuta Eliane Guimarães, que atuou em duas unidades hospitalares de Fortaleza, uma pública e outra privada, com pacientes infectados pelo coronavírus. Ela capacitou outros profissionais de Saúde no manuseio dos respiradores e hoje acompanha pacientes que necessitam de sessões em fisioterapia por conta das sequelas da doença.
Eliane Guimarães reforça que, se a pandemia tem mostrado a importância de todo o corpo de profissionais de Saúde, a situação de sequelados tem revelado uma questão pouco priorizada, que são os profissionais de diferentes especialidades, como fonoaudiologia e fisioterapia. “Um tratamento adequado é o que gera resultados positivos. Mas não basta ter bons profissionais se os pacientes, que já venceram uma batalha muito difícil, deixarem de fazer o dever de casa”.