As muitas memórias do Caldeirão

No Caldeirão a terra dava frutos e os frutos eram divididos. O líder dizia: nada era de ninguém e tudo era de todos. E assim se fez uma irmandade de agricultores, irmãos pois eram filhos de Deus e eram filhos de Deus porque conheciam a mensagem igualitária da Bíblia. Na seca de 1932, muitos escaparam da fome com as reservas da comunidade e alguns dos que por lá passaram, lá ficaram. O Caldeirão crescia.

Em setembro de 1936, um destacamento militar invadiu e destruiu o Caldeirão. O momento de maior aperreio foi em março de 1937, quando o Cap. Bezerra e mais três militares morrem em luta com o grupo de ex-habitantes da comunidade liderado pelo Beato Severino Tavares, que também morreu no embate.

No início de 1938, o Beato Lourenço voltou. Com pouco tempo, isto é, em 1939, aconteceu o que já era previsível: foi novamente obrigado a sair do Caldeirão. Conseguiu comprar um pedaço de chão em Exu, onde recompôs uma pequena comunidade, também calcada no trabalho e na oração. Cercado de sua nova irmandade e das visitas, José Lourenço morreu em 1946.

Entre 1989 e 2002, entrevistei, em Juazeiro, vários sobreviventes do Caldeirão. No desenrolar da pesquisa publiquei, em 1991, um livro enfocando alguns trechos desses depoimentos, intitulado “Caldeirão: um estudo histórico sobre o Beato José Lourenço e suas comunidades”. Depois, escrevi muitos outros ensaios nessa mesma linha de interpretação, alguns foram publicados outros foram apresentados em congressos e colóquios acadêmicos.

“Relembrar o passado é sofrer duas vezes...”. Foi assim que dona Marina respondeu quando lhe perguntei, pela primeira vez, sobre a vida no Caldeirão. Juazeiro estava cheio de gente. Era o dia primeiro de novembro de 1988, véspera da grande romaria de finados, em louvor a um grande morto, tão grandioso que nem morreu de verdade. Todos os devotos sabem: o padrinho não morreu, apenas mudou-se. Mais do que nunca, o Dia de Finados deixa a cidade saturada de memórias, no entanto, dona Marina preferiu não falar.

Só depois de prosear sobre as virtudes do padrinho é que ela começou a lembrar do Beato José Lourenço: “era um homem humilde, só pensava em fazer o bem...”. Foram dois anos de entrevistas com ela e mais meia dúzia de remanescentes, sobretudo com Maria de Maio, João Silva e Eleutério Tavares. Lembranças sobre a abundância e a fraternidade em contraste com a escassez depois da expulsão em setembro de 1936. A certeza de ter vivido “no caminho correto” entrava em contradição com as acusações que faziam da experiência comunitária um ato criminoso.

Os depoimentos fazem um acerto de conta com o passado. Falam o que foi abafado nas malhas da história oficial, colocam-se diante de outras memórias, construindo o passado como exigência do presente. Através de suas lembranças, ficam diante de espelhos e se vêem como partícipes de uma história exemplar. Com a voz, enfrentam as letras estampadas em jornais que, nos anos 30, criminalizaram o Caldeirão. Mais que isso: mostram certa autonomia diante da anêmica produção intelectual sobre o assunto. Certa vez, o sr. Eleutério me disse: “esses livros que escrevem por aí é muito mal feito, cheio de mentira...”.

De qualquer modo, já temos uma significativa quantidade de pesquisadores. Cito alguns, somente para evidenciar a diversidade de tempos e abordagens, afinal o primeiro texto (e um dos mais importantes) sobre o Caldeirão foi publicado quando José Lourenço ainda era vivo: José Alves de Figueiredo (1934), Rui Facó (1963), Abelardo Montenegro (1973), Maria Isaura Pereira de Queirós (1977), Tarcísio Holanda (1981), Rosemberg Cariry (1982), Firmino Holanda (1983), Luitgarde Oliveira Barros (1988), Alberto Galeno (1988), Oswald Barroso (1989), Eduardo Diatahy Bezerra de Menezes (1985), Eduardo Hoornaert (1990), Veralúcia Maia (1992), Domingos Sávio (2004).

O Caldeirão acabou, mas continua. Sua importância para a nossa história se torna cada vez mais atual, sobretudo quando se vê que não temos a reforma agrária que já deveríamos ter. E, como se isso não bastasse, ainda não desapareceram as notícias de trabalhadores rurais assassinados pelo poder do latifúndio.

O Caldeirão continua, sobretudo no modo pelo qual tratamos a força e a ternura de lembrar e esquecer, essa ética amorosa e bélica de aceitar ou negar as tramas e tramóias do tempo. É preciso, em primeiro lugar, enfrentar a falsificação do tempo, que sabe mentir na medida em que massacra sem piedade o passado e o futuro. Trata-se da “tirania do presente”, onde não há a grandeza do outro, porque o eu já é o maior de todos e só se sente satisfeito com o outro diminuído.

Francisco Régis Lopes
Doutor em História Social (PUC-SP), professor do Departamento de História (UFC) e diretor do Museu do Ceará.