O arquivista Aristides de Arruda Camargo, natural de São Paulo, se mudou para Farias Brito e fez história
Farias Brito. “Os homens criam raízes, como as árvores”. Sem essas raízes, que os ligam a terra, à cidade, a casa onde moram, eles se sentem perdidos. Foi o que ocorreu com o arquivista Aristides de Arruda Camargo. Neto de um médico oftalmologista, partícipe da Revolução Constitucionalista de 1932, e de uma imigrante alemã e filho de um médico ortopedista e uma escritora e botânica, Aristides tinha tudo para viver no conforto e na bonança da capital paulista.
Trabalhou na Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, fez parte da equipe que investigou a vida dos presos políticos, na época da anistia, entre os quais, Júlio Prestes. Comprou um apartamento em São Paulo, viveu intensamente todas as emoções de uma cidade grande, como integrante de uma família de classe média.
Mas São Paulo, segundo sua definição, tornou-se uma senhora com 450 anos de idade que, ao tentar abraçar seus filhos termina sufocando-os. Os paulistanos não conhecem seus vizinhos e não sabem quem plantou a árvore que cresce na rua, em frente, ou quem a arrancou. Correm, lutam pela vida, têm bronquite.
Enquanto acende um cigarro forte, feito à mão, Aristides reclama da poluição, da falta de saneamento, do barulho infernal, do espaço reduzido para suas crianças, das ruas cheias de valas, de larvas. “As cidades grandes foram desumanizadas. As pessoas estão sempre de passagem, não conhecem seus vizinhos, espremem-se em apartamentos, têm suas vidas controladas pelo síndico”, critica o arquivista.
Amores e desamores nasceram e morreram em meio à avalanche de aventuras e desilusões. A síndrome da cidade grande levou Aristides à depressão, a estafa, cansaço mental e, consequentemente, ao consumo de medicamentos controlados. Um psicólogo primo dele recomendou a suspensão de todos os remédios e prescreveu a música como meio de Aristides se encontrar consigo mesmo.
Caminho inverso
Ouvindo músicas, o arquivista descobriu que o seu sentido de vida estava numa pequena cidade do interior. Tomou a decisão de procurar uma cidadezinha do interior de São Paulo, “nem que fosse para criar galinha”, recorda. Na crise existencial encontrou a amiga Irailce Alcântara, natural de Farias Brito, que lhe disse em tom de brincadeira: “Vá para a minha cidade”. Algum tempo depois, ele pediu que o pai da amiga escolhesse uma pequena residência e, em seguida, enviou o dinheiro necessário para quitar o modesto imóvel.
Em 1991, tomou o caminho inverso dos nordestinos, que deixam seu torrão natal em busca da cidade grande. Chegou à Farias Brito e, como quem nada queria, começou a consertar a casa situada na então Rua do Açude, uma rua íngreme de onde se avista o leito do Rio Cariús e a Serra do Quincuncá. Na bagagem, havia apenas lembranças dos parentes, um punhado de roupas e alguns documentos pessoais. Sua maior riqueza era a sistematização do trabalho cotidiano, o apego aos bens culturais e o desejo de servir a todos.
Sua primeira missão na cidade começaria em um cantinho do prédio onde funcionara o Mercado da Carne e consistia na salvaguarda da desordenada documentação da Prefeitura Municipal. Com destaque para as correspondências oficiais, os projetos de lei, os artigos impressos etc.
Emprego concursado
No início de 1993, aquele paulistano magro, alheio às vaidades e ares estranhos, seria aprovado em concurso público, promovido pela Prefeitura de Farias Brito, com certificados além do necessário. Para ganhar a confiança das pessoas e das autoridades do lugar, o técnico em arquivo dispôs-se a arrumar o acervo municipal em troca de um pequeno valor. Quando alguém menciona o nome Aristides, lembra-se o “louco” trocando os antigos livros de atas da Câmara Municipal, em posse de alguns bodegueiros locais, por livros novos comprados com recursos dele mesmo.
Espírito andarilho
Lembra-se, também, o “doido” percorrendo a rua principal com um carrinho de mão cheio de documentos municipais recolhidos à margem do Rio Cariús. Espírito andarilho e bom de bate-papo, pouco a pouco, ele se transformou em um depositário de informações, em uma referência para outros ousados sonhadores.
O comportamento estranho daquele forasteiro chamou a atenção dos moradores. Para Aristides, entretanto, a sua coleção de papéis era uma relíquia, um verdadeiro tesouro particular. E assim o lixo foi se transformando em pequeno museu que conta a história da cidade e de sua gente.
CONTRIBUIÇÃO
Aristides se tornou a enciclopédia da cidade
Farias Brito. Hoje, com 56 anos, o arquivista Aristides de Arruda Camargo é a enciclopédia da cidade. Sabe tudo sobre Farias Brito e o Cariri, a começar pela mudança do nome da cidade que antes era conhecida como Quixará. Como existia muitas cidades no Ceará iniciada com o mesmo prefixo, Quixadá, Quixeramobim e Quixilô, o nome foi mudado para Farias Brito, numa homenagem ao grande filósofo cearense de São Benedito.
A mudança do nome está relacionada com a maldição de um antigo vigário da cidade que teria afirmado: “esta vila nunca passará de Quixará”. Entre os documentos colecionados por Aristides, estão inventários, ordens de pistolagens e contribuições que o povo de Quixará deu para a construção de um navio na Segunda Guerra Mundial.
Arquivo público
Preocupado com as pilhas de documentos oficiais, o homem de caminhar trôpego e linguagem alvoroçada, depressa organizou o projeto de lei que criou o Arquivo Público da cidade de Farias Brito. Em seguida, o suposto louco assumiu, por mérito próprio, a direção da entidade e se fez necessário aos servidores e aposentados que lhe procuravam.
Para o filho de Farias Brito, Elmano Rodrigues, que trabalha na parte editorial da Universidade Federal de Brasília, Aristides deu uma grande contribuição para a história do Cariri. Deu o maior exemplo de dignidade. Elmano afirma que “só um possuído por acesso de loucura, largaria uma confortável vida na principal urbe do sul do País, para resgatar bens culturais de um torrão tão estranho, que mal se sabe ao que o levou a tantos desafios”.
Respeito
Emano ainda faz questão de destacar que “tenho por Aristides um respeito humano profundo e externo o maior sentimento de agradecimento e de gratidão, por ter tornado possível, clarear mentes e abrir horizontes, no meio de tantos desafios impostos”. Ao fazer este comentário, ele conclui: “Farias Brito um dia irá reconhecer esse amor tão profundo, que só aos loucos, é dado o poder soberano de entendê-los”.
Outro admirador do trabalho do arquivista é o professor e pesquisador, Eldinho Pereira. “Quem diz que o brasileiro não tem memória é porque não conhece homens como Aristides Neto, uma figura popular que em 17 anos de trabalho intenso, notabilizou-se pela dedicação à memória e à cultura do Cariri a partir da cidade de Farias Brito”, destaca o professor acrescentando que, em qualquer idade ou lugar, sempre tem alguém colecionando algo, dos objetos mais baratos aos mais caros, dos comuns aos mais raros. “Aristides é um desses garimpeiros anônimos da história”, complementa.
Construção da história
Eldinho, que vem acompanhando o trabalho de Aristides há mais de dois anos, afirma que ele junta objetos bibliográficos, afetivos e simbólicos dos habitantes mais conhecidos, como se fosse a sua própria mobília. Noutra cena, ele dispõe seus bens culturais para conhecidos e curiosos em geral. Para Aristides, a documentação da oralidade do povo é fundamental para a construção da história. “Se nós não documentamos a oralidade do povo, estamos jogando fora os rascunhos de nossa vida.”
Em meio a elogios, indiferença e convites para trabalhar em outros centros mais adiantados, o colecionador desprovido de qualquer vaidade, vai cantando a música de Zeca Pagodinho que diz: “E deixa a vida me levar. Vida leva eu...”.
Mais informações:
Aristides de Arruda Camargo
Rua 13 de maio, S/N - Farias Brito
(88) 35441.620
ANTÔNIO VICELMO
Repórter