A operação deflagrada pela Polícia Federal nesta quinta-feira (8) surpreendeu ao cumprir mandados de prisão e de busca e apreensão contra ex-membros do alto escalão do Governo Bolsonaro (2019-2022), o próprio ex-presidente e militares das Forças Armadas, todos apontados como suspeitos de participar da tentativa de golpe de Estado que buscava anular o resultado das eleições de 2022. Ao todo, 29 pessoas foram alvo da operação, denominada Tempus Veritatis (Hora da Verdade, em latim). Dentre eles, estão dois generais cearenses.
São eles: Estevam Cals Theophilo Gaspar de Oliveira, que foi comandante de Operações Terrestres (COTER) do Exército Brasileiro durante a gestão de Bolsonaro, e Paulo Sérgio Nogueira de Oliveira, que foi ministro da Defesa no último ano de mandato do ex-presidente.
O primeiro general, um militar de 4 estrelas do Exército, ascendeu ao comando do COTER em novembro de 2019, quando seu irmão, general Guilherme Theophilo — que disputou o cargo de governador do Ceará em 2018 —, era secretário da Segurança Pública de Bolsonaro. Estevam Theophilo ficou no cargo até o fim de novembro de 2023, ou seja, prosseguindo no comando durante parte do terceiro Governo de Lula (PT).
Na decisão que autorizou a operação desta quinta, o COTER é apontado como a unidade do Exército com maior contingente de tropas sob sua administração e, por isso, seria "fundamental" para a tentativa de golpe.
O segundo general cearense foi nomeado como ministro da Defesa de Bolsonaro em 1º de abril de 2022, ficando responsável pela direção superior das Forças Armadas. Ele permaneceu no cargo até 31 de dezembro do mesmo ano. Na decisão do Supremo Tribunal Federal (STF), datada de 26 de janeiro e relatada pelo ministro Alexandre de Moraes (que seria um dos alvos da tentativa de golpe), Paulo Sérgio Nogueira seria um dos integrantes da "alta cúpula" do Governo que articulavam um golpe muito antes do resultado da última eleição presidencial — vencida por Lula.
Contra eles, foram cumpridos mandados de busca e apreensão e aplicação de medidas cautelares, como a proibição de falar com outros investigados na operação, inclusive por meio de advogados, e de se ausentar do País. Os passaportes de ambos inclusive devem ser entregues em até 24 horas.
Organização criminosa
Na representação apresentada pela Polícia Federal ao STF, para o cumprimento de mandados contra os suspeitos, a investigação aponta a atuação de uma suposta organização criminosa dentro do então Governo Bolsonaro para executar a tentativa de Golpe de Estado, com participação do ex-presidente. Documentos, delações, conversas por aplicativos de mensagens, vídeos e áudios subsidiam a tese levantada pela investigação.
A atuação da organização criminosa seria dividida em cinco eixos, conforme consta em representação da PF apresentada ao Supremo. Eram eles:
- ataques virtuais a opositores;
- ataques às instituições (STF e Justiça Eleitoral), ao sistema eletrônico de votação e ao processo eleitoral;
- tentativa de Golpe de Estado e de abolição violenta do Estado Democrático de Direito;
- ataques à vacina contra a Covid-19 e às medidas sanitárias adotadas na pandemia;
- e uso da máquina pública para obtenção de vantagens, como utilização de cartões corporativos para pagamento de despesas pessoais, inserção de dados falsos de vacinação contra a Covid-19 no sistema do Ministério da Saúde para falsificar cartões de vacina e desvio de bens de alto valor patrimonial entregues por autoridades estrangeiras ao ex-presidente Jair Bolsonaro.
Os generais cearenses Estevam Theophilo e Paulo Sérgio Nogueira, bem como os demais investigados, teriam supostamente atuado no eixo destinado à tentativa de Golpe de Estado, que era divido em seis núcleos, segundo as investigações da PF.
Núcleos de apoio ao golpe
Cada um dos núcleos era responsável por uma frente de atuação. Eram elas:
- Desinformação;
- Incitação para militares a aderirem ao golpe de Estado;
- Jurídica;
- Operacional de apoio às ações golpistas;
- Inteligência paralela;
- Oficiais de alta patente com influência e apoio a outros núcleos.
Em suma, o objetivo dos núcleos era planejar medidas jurídicas e de intervenção militar caso o resultado da eleição não fosse favorável a Jair Bolsonaro. Para isso, fake news de fraude em eleições presidenciais, antes mesmo da realização do pleito, eram disseminadas para, caso necessário, legitimar um golpe.
Tanto Paulo Sérgio como Estevam integravam o Núcleo de Oficiais de Alta Patente, conforme aponta investigação da PF. Os membros tinham como missão influenciar e incitar apoio às ações dos demais núcleos para consumação do suposto golpe, utilizando, inclusive, do poder atribuído a eles pela alta patente militar que detinham — fosse para proteger colegas ou intimidá-los, aponta a PF.
Vídeo registra encontro
No dia 5 de julho de 2022, o presidente Jair Bolsonaro se reuniu com a "alta cúpula" do Governo Federal para cobrar "conduta ativa na promoção da ilegal desinformação e ataque à Justiça Eleitoral". A reunião foi documentada em vídeo, que constava em um computador apreendido na casa do ex-ajudante de ordens de Bolsonaro, Mauro Cid.
Na reunião, o então presidente aponta que as pesquisas parecem estar certas e que provavelmente Lula sairia vitorioso do pleito que se avizinhava. Na ocasião, o então chefe de Gabinete de Segurança Institucional, Augusto Heleno, afirma que é para "virar a mesa", tem que ser "antes da eleição". Na ocasião, o então ministro da Defesa, o cearense Paulo Sérgio Nogueira, declara guerra ao TSE.
No diálogo, Bolsonaro indaga: "(...) nós vamos esperar chegar 23, 24, pra se foder? Depois perguntar: por que não tomei providência lá trás? E não é providência de força, não, caralho! Não é dar tiro. Ô Paulo Sérgio, vou botar a tropa na rua, tocar fogo aí, metralhar. Não é isso, porra!".
Em parte da sua fala, Paulo Sérgio Nogueira descreve a suposta estratégia.
"O que eu sinto nesse momento é apenas na linha de contato com o inimigo. Ou seja... na guerra, a gente... linha de contato, linha de partida. Eu vou romper aqui e iniciar minha operação. Eu vejo as Forças Armadas e o Ministério da Defesa nessa linha de contato. Nós temos que intensificar e ajudar nesse sentido pra que a gente não fique sozinho no processo", declara o então ministro da Defesa.
Em seguida, ele admite atuação das Forças Armadas para tentar reeleger Bolsonaro.
"Pra encerrar... senhor Presidente, eu estou realizando reuniões com os Comandantes de Força quase que semanalmente. Esse cenário, nós estudamos, nós trabalhamos. Nós temos reuniões pela frente, decisivas pra gente ver o que pode ser feito; que ações poderão ser tomadas pra que a gente possa ter transparência, segurança, condições de auditoria e que as eleições se transcorram da forma como a gente sonha! E o senhor, com o que a gente vê no dia a dia, tenhamos o êxito de reelegê-lo e esse é o desejo de todos nós", acrescentou.
Minuta do golpe
Na investigação, a PF descobriu, ainda, uma "minuta do golpe", documento que previa a prisão dos ministros do STF Gilmar Mendes e Alexandre de Moraes, além do presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (PSD-MG). A minuta teria sido entregue a Bolsonaro em novembro de 2022 por Filipe Martins, ex-assessor de assuntos internacionais da presidência da República — atualmente deputado federal —, e pelo advogado Amauri Feres Saad. Ele foi preso nesta quinta-feira, na casa de sua namorada em Ponta Grossa, no Paraná.
O documento, todavia, teria sido alterado a pedido do presidente. O ex-presidente pediu que os nomes de Pacheco e Gilmar Mendes fossem retirados e que permanecesse apenas o de Alexandre de Moraes, conforme aponta a investigação da Polícia Federal. A realização de novas eleições também teria sido mantida.
Várias reuniões foram realizadas com o presidente e outros membros que participavam dos núcleos de apoio ao Golpe para alterar o documento entre novembro e dezembro. Na representação apresentada ao STF, a Polícia Federal aponta que a minuta teria apresentado, inclusive, ao ministro da Defesa.
Responsável por prisão de Moraes e proteção de aliados
Em outro trecho da representação, a Polícia Federal cita general Estevam Theophilo como um dos militares que utilizavam do seu cargo para ações relacionadas à tentativa de execução do golpe de Estado, como eximir possível responsabilidade criminal aos envolvidos pelos atos até aquele momento já realizados.
No dia 9 de dezembro de 2022, ele teria se reunido com Bolsonaro no Palácio da Alvorada e, segundo diálogos encontrados no celular de Mauro Cid, teria consentido com a adesão ao golpe, desde que Jair Bolsonaro assinasse a medida (minuta).
"Nesse sentido, além de ser o responsável operacional pelo emprego da tropa caso a medida de intervenção se concretizasse, os elementos indiciários já reunidos apontam que caberiam às Forças Especiais do Exército (os chamados Kids Pretos) a missão de efetuar a prisão do Ministro do Supremo Tribunal Federal ALEXANDRE DE MORAES assim que o decreto presidencial fosse assinado", diz representação da PF na decisão do STF que autorizou o cumprimento dos mandados nesta quinta.
Após a transição do Governo Federal, no dia 2 de janeiro de 2023, Mauro Cid encaminhou ao general Estevam Theophilo uma notícia jornalística com informações de que ele poderia ser preso nas primeiras semanadas do ano, conforme encontrou a PF. Na ocasião, o comandante do COTER respondeu:
"Fique tranquilo Cid. Vou conversar com o Arruda hoje. Nada lhe acontecerá"
Segundo a investigação, o teor do diálogo indica que o nome Arruda seria do então comandante do Exército, General Júlio Cesar de Arruda — que foi exonerado em 21 de janeiro de 2023, após rumores de leniência com militares que participaram dos atos golpistas contra a sede dos Três Poderes em 8 de janeiros do mesmo ano.
Com a resposta, Estevam Theophilo estaria tentando eximir possível responsabilização de Mauro Cid ao acionar, até aquele momento, o comando do Exército.
O Diário do Nordeste procurou o irmão de Estevam Theophilo a fim de obter outras informações sobre o caso e aguarda uma resposta. A reportagem não conseguiu localizar a defesa de Paulo Sérgio até a publicação da matéria.