Por que há mobilização para Lula escolher uma ministra negra para nova vaga no STF?

Com a aposentadoria da ministra Rosa Weber em outubro, o presidente Lula deve indicar o segundo nome para a Corte nesse terceiro mandato

"Ministra do STF? Igual a... Igual a quem, mãe?", pergunta Ana, a menina negra protagonista do curta-metragem "Todo Mundo Tem um Sonho", uma das peças que integram a campanha #MinistraNegra — mobilização para pressionar que o presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) indique, pela primeira vez, uma mulher negra para o Supremo Tribunal Federal (STF). 

Criada há 132 anos — apenas três após a Proclamação da República —, a Suprema Corte teve, até o momento, 171 ministros. Destes, apenas seis diferem do perfil predominante: três mulheres brancas e três homens negros ocuparam uma das 11 cadeiras da mais alta instância do Judiciário brasileiro. Os demais 165 ministros foram homens brancos. 

A proximidade da aposentadoria compulsória da atual presidente do Tribunal, Rosa Weber, em outubro — quando ela completa 75 anos — aumentou a pressão de entidades da sociedade civil e de movimentos sociais, além de vozes da classe política e do próprio Judiciário, para que haja uma indicação inédita para que uma mulher negra possa ser a 172ª jurista a integrar o STF. 

"O Supremo é a Corte mais alta de julgamento e acumula a função de ser a guardiã da Constituição. Em um país tão diverso, em que 53% da população é negra, essa ausência de representatividade completa em um espaço de decisão, a gente entende como uma negação à ocupação do espaço", afirma a advogada do Instituto de Defesa da População Negra (IDPN), Maysa Carvalhal.

O IDPN foi o responsável pela produção do curta-metragem citado no início desta reportagem e tem, junto a outras entidades, encabeçado a defesa da indicação de uma ministra negra para o Supremo.

A mobilização conta ainda com a divulgação de listas com nomes de juristas negras para a vaga, 'twittaços' e coleta de apoios para abaixo-assinado a ser encaminhado ao Palácio do Planalto. O documento contava com 30.241 assinaturas até a última sexta-feira (15). 

Pressão por representatividade

Esta será a segunda indicação presidencial ao STF nesse terceiro mandato de Lula. Na primeira, o presidente indicou Cristiano Zanin, que atuou como advogado de defesa do petista durante os processos contra ele na Operação Lava-Jato. Antes disso, no entanto, também houve pressão quanto à escolha do presidente para a Corte. 

No dia 8 de março, foi entregue, ao Palácio do Planalto, o "Manifesto por Juristas Negras no STF", carta assinada por 100 entidades. No mesmo mês, integrantes do Governo Lula e do próprio STF se manifestaram favoráveis à indicação de uma jurista neste perfil para o Tribunal. 

O ministro do STF, Edson Fachin, por exemplo, falou sobre o tema também no Dia da Mulher, em saudação no plenário do Supremo. 

"Especial cumprimento às senhoras ministras na data de hoje, ministra Rosa (Weber), e ministra Cármen (Lúcia), que aqui estão. E a ministra Ellen (Gracie) que aqui esteve. E peço licença para cumprimentar uma quarta ministra, que quem sabe é o lugar do futuro colocar nesse plenário, uma mulher negra", disse.

O vice-presidente Geraldo Alckmin (PSB) disse, naquele mês, que considerava "positiva" a ampliação da "presença de mulheres" e "também a presença negra". "Somos um país de miscigenação de origem africana", completou. 

Ministro de Direitos Humanos, Silvio Almeida disse ser "fundamental que haja uma mulher negra no STF, uma pessoa negra para que a gente comece a discutir a democratização nos espaços de poder". A fala foi feita em março, quando ele acompanhou julgamento sobre perfilamento racial, adiado após pedido de vistas. 

"O que se percebe é que os ministros têm uma sensibilidade em relação a esse caso, em relação ao tema de fundo que é a questão do perfilamento racial", disse na época. "Mas, efetivamente não temos nenhuma pessoa negra discutindo a questão racial aqui no plenário", completou. 

Impacto nos julgamentos sob análise

Esta representatividade também é apontada pela advogada Monique Damas, diretora do Instituto Juristas Negras, como ponto relevante a ser considerado na indicação. 

"Se a gente for olhar a composição do STF, nós entendemos que eles não nos representam. Eles não entendem as nossas dores, eles estão legislando sobre os nossos corpos, eles estão decidindo sobre os nossos corpos, porém eles não sabem o que nós enfrentamos. Então, mais uma vez, a representatividade ali é importante, porque são casos caros para nós". 
Monique Damas
Diretora do Instituto Juristas Negras

A ausência de ministro e ministras negras na Corte atualmente faz com que assuntos importantes para esta população, como "liberdade, educação, saúde e precarização", conforme citados por Maysa Carvalhal acabem sendo julgados por "vidas que não são atravessadas por essas questões". 

A diversidade de perfis na Corte implica, por outro lado, "em um julgamento mais diverso, mais compreensivo da população brasileira". Por isso, concorda Monique Damas, é preciso ter "todas as representações da sociedade" presentes na Corte. 

"O Brasil é um país diverso e eu preciso ter negro, eu preciso ter índio, eu preciso ter mulheres, eu preciso ter mulheres negras. E quando eu digo mulheres e mulheres negras é porque eu não posso afastar o gênero e a raça", ressalta.

Ministra da Igualdade Racial do Governo Lula, Anielle Franco também defende a indicação de uma mulher negra como "um firme passo à frente no desenvolvimento democrático do nosso país", segundo escreveu em artigo de opinião publicado no Poder 360, no início de setembro. 

Ela fala da própria vivência como ministra de Estado como um lugar de "visibilidade" para as mulheres negras e ressalta querer ver "outra ministra negra acessando o espaço que lhe cabe". "A representatividade irradia transformação, teoria, simbologia e prática num único movimento", ressaltou no texto. 

'Na boca do povo'

Para Maysa Carvalhal, a recente mobilização em torno do tema é também reflexo do protagonismo do Supremo Tribunal Federal na agenda política do País.

Ela cita, por exemplo, que há alguns anos muitos nem sabiam quantos ministros haviam na Corte, enquanto hoje a maioria da população conhece os nomes dos magistrados que integram o Tribunal. "(A indicação de uma mulher negra para o STF) É uma pauta antiga, mas ganha repercussão diferente, porque o Judiciário está na boca do povo. E é bom que esteja", reforça.

Professora de Ética e Filosofia Política da Universidade de Brasília, Ligia Pavan Baptista aponta como "positiva" a mobilização em torno da indicação para o Supremo. "Precisamos cobrar ações efetivas para promoção da igualdade de gênero, que é o quinto Objetivo de Desenvolvimento Sustentável das Nações em Unidas em todas as esferas de poder, em todas instituições, em todos colegiados", ressalta.

A diversidade, continua a docente, precisa ser ampliada não apenas em relação a gênero e raça, mas também a outros marcadores sociais, como orientação sexual e crença. "Esperamos que as mobilizações populares produzam o efeito desejado", completa a professora.

Contudo, apesar da pressão, os indicativos vindos de Brasília apontam o favoritismo de nomes como o advogado-geral da União, Jorge Messias, e o presidente do Tribunal de Contas da União (TCU), Bruno Dantas. 

Carvalhal citou os dois nomes ao indicar que, mesmo que a campanha não obtenha o resultado pretendido, "o maior saldo que fica é de debate, de acúmulo social" e que criar o "constrangimento social" para o governo também é positivo. 

"Conseguimos mobilizar organizações e toda uma sociedade em torno de negação de espaços de poder em uma Corte que há pouco tempo atrás não estava na boca do povo. Essas mulheres, que estão sendo veiculadas como 'supremáveis', isso por si só para a carreira delas vai ser importante. E outras meninas negras podem sonhar com a oportunidade de serem o que quiserem, de estar em espaços de poder e de decisão".
Maysa Carvalhal
Advogada do Instituto de Defesa da População Negra

A mobilização por maior representatividade deve, inclusive, ser estendida a outros tribunais, onde a presença feminina e de juristas negros ainda é limitada. 

Dados divulgados pelo Conselho Nacional de Justiça no início de setembro revelam que apenas 1,7% dos magistrados e magistradas se identificam como negros, enquanto 12,8% se identificam como pardos. Já as mulheres representam 38,8% da magistratura, enquanto as magistradas negras são 7%. 

"A indicação de uma mulher negra aponta para a esperança, aponta para a mudança, aponta para dizer não ao racismo, não ao sexismo", afirma Monique Damas.