O Baú da Política já contou a história da cidade cearense que virou a Capital Federal por um dia. Mas, muito antes disso, uma vila cearense, localizada no Cariri, teve seu nome escrito na história nacional e foi uma nação independente por oito dias. A então vila hoje é a cidade do Crato, terra natal de Padre Cícero, mas esse não é mais um relato de milagre do santo popular, e sim a de um levante liberal contra a monarquia instalada no Brasil.
O “7 de Setembro” do Crato ocorreu em 3 de maio de 1817, na esteira de um movimento revolucionário que ocorria em Pernambuco. Naquele dia, o subdiácono José Martiniano de Alencar viajou até o Crato a mando dos revolucionários pernambucanos. A vila cearense era onde morava sua mãe, a revolucionária Bárbara de Alencar.
Na data histórica, o filho de Bárbara então subiria ao púlpito, de batina e roquete, na Igreja Matriz de Nossa Senhora da Penha, e proclamaria a independência da vila cinco anos antes da proclamação da Independência do Brasil e 72 anos antes da proclamação da República. Martiniano, no entanto, não era uma liderança solitária em prol da independência.
Além de militares, proprietários rurais, juízes, artesãos, comerciantes, o que marcou o movimento revolucionário foi um apoio ativo de religiosos da Igreja Católica, a ponto de o levante ficar conhecido como a “revolução dos padres”
Por que o Crato?
Para entender o papel de Martiniano, é preciso contextualizar a relação entre os moradores do Crato com Pernambuco. No início do século XIX, muitos filhos de famílias ricas cratenses eram enviados a Olinda e Recife, duas cidades pernambucanas, para estudar, especialmente no Seminário de Olinda.
É em Pernambuco, justamente no início desse século, que ideais oriundos da Revolução Francesa encontram terreno fértil para prosperar. Quem narra todo esse contexto são os pesquisadores Luiz Costa, mestrando em Letras pela Universidade Regional do Cariri (Urca), e Francisco Felipe Silva, mestrando em História pela Universidade Estadual do Ceará (Uece).
Os dois estudaram na última década o episódio da independência do Crato e sua oficialização. Segundo Luiz, além de todo esse cenário favorável a movimentos liberais em Pernambuco, soma-se a presença de Manoel de Arruda Câmara — um religioso maçom que disseminou os pensamentos da revolução francesa em Pernambuco e manteve contato com Bárbara de Alencar desde antes 1810.
“Sem falar que o Crato era perto o suficiente de Pernambuco para que eles pudessem socorrer os aliados e longe o suficiente de Fortaleza para evitar ataques repressivos”, resume Luiz Costa.
José Martiniano Pereira de Alencar, filho de Bárbara de Alencar, é pai do escritor cearense José de Alencar.
A preparação para a independência
Conforme narra Luiz Costa, em 29 de abril de 1817, José Martiniano então vem ao Ceará, sob influência da Revolução Pernambucana, para arregimentar apoio e reforçar o movimento liberal na vila do Crato.
No dia 30, já na cidade de sua mãe, Martiniano reúne-se com o vigário da vila, Miguel Saldanha, e com outros nomes que iriam liderar o movimento de independência do Crato, como Tristão Gonçalves, seu irmão, Inácio Tavares Benevides, Miguel Justo, Joaquim Francisco de Gouvêa, entre outros “cabeças” do movimento.
O que facilitava a conspiração era que a casa de Bárbara de Alencar, sua mãe que apoiava e agia em prol de todo o movimento, era vizinha da casa do vigário. A partir do dia 29 de abril até o dia 3 de maio, todo o movimento é preparado e novos apoiadores são agregados aos planos liberais.
O dia da independência e as “contendas históricas”
No dia 3 de maio de 1817 ocorreu o grande anúncio. Conforme relato obtido pelos pesquisadores Luiz Costa e Francisco Felipe Silva, após a missa, Martiniano lê o Preciso de José Luís de Mendonça, um documento que criou a constituição do governo provisório de Pernambuco.
A partir daí, os eventos que se sucedem têm versões diferentes de acordo com cada historiador. São sobre essas “contendas históricas” que os pesquisadores se debruçaram em um artigo publicado em 2019 chamado “A independência do Crato, no contexto da revolução pernambucana de 1817, e o episódio de sua oficialização na Casa de Câmara”.
Alguns historiadores divergem do que de fato ocorreu: um jantar em comemoração ao levante; a libertação de presos da cadeia para adquirirem armas e pessoas para sua tropa; a lavra de uma ata na Casa de Câmara em que decreta a oficialização de sua independência com a aderência ao republicanismo e quem, deveras, assinou essa carta de independência.
No texto, eles avaliam pesquisas de Studart Filho e seu avô, Barão de Studart; Pedro Theberge e João Nogueira Jaguaribe, além de historiadores do Instituto Cultural do Cariri (ICC). Contudo, tomam como base três documentos de fontes diretas: a lista de acusados de participação no levante liberal da vila do Crato, a carta do padre Luiz José Corrêa endereçada a David Leopoldo Targini e a defesa de Miguel Carlos da Silva Saldanha, o vigário da vila do Crato.
Por esses relatos das fontes diretas, os pesquisadores narram que Martiniano chega à Igreja com uma tropa com mais de 200 homens e, segundo eles, um grupo fica do lado de fora do local e outro entra com o revolucionário.
Ainda no dia 3 de maio, os revolucionários voltaram para casa de Bárbara de Alencar e seguiram confabulando planos para proclamar a independência de Icó — que não ocorreu pela forte influência monarquista — e da vila de Jardim — que ficou independente no dia 5 de maio de 1817. Havia planos ainda de avançar sobre Sobral, Fortaleza e Aracati, chegando até a queda do governador da época, Manuel Ignácio de Sampaio.
“Depois do episódio na Igreja, eles voltam para a casa de Martiniano e começam a planejar os próximos passos, inclusive do levante de Jardim, que ocorre no dia 5. Alguns historiadores contam que, no dia 3, eles foram direto para a Câmara assinar a carta de independência, mas as fontes que conseguimos dizem que eles foram para casa. Há aí (nesses historiadores) uma vontade de romantizar, criar uma imagem histórica de que toda a revolução ocorreu em um único dia”
“Então, somente no dia 4 de maio de 1817 é que, em Crato, ocorre um jantar oferecido pela Bárbara de Alencar, o jantar da liberdade, em que ocorre a assinatura de decretos, atas e documentos instalando o governo provisório”, acrescentou o pesquisador. A assinatura dos atos ocorre na Casa de Câmara do Crato. Há ainda relatos sobre a liberação de presos.
Movimento sufocado
No Crato, a independência dura poucos dias e há escassos relatos sobre o que houve nos dias de “liberdade” dos cratenses, segundo os historiadores. No dia 11 de maio de 1817, uma semana e um dia após o sucesso do levante em 3 de maio, o governo provisório é sufocado por um movimento monarquista liderado pelo capitão–mor José Pereira Filgueiras ao lado de Leandro Bezerra Monteiro, tenente–coronel–comandante do regimento de cavalaria.
“Eles vão se pôr no alto do Barro Velho, que hoje em dia fica na avenida Duque de Caxias, acima do Colégio Diocesano, e, junto com a tropa, vão descer ao Crato e prender os principais ‘cabeças’. Martiniano e Tristão Gonçalves são presos aí, Bárbara de Alencar vai fugir com o vigário do Crato, mas vão ser presos depois nas imediações do Rio do Peixe, na Paraíba”, narrou Luiz Costa.
Esta prisão faz de Bárbara a primeira mulher a ser presa política no Brasil. Atualmente, ela consta no livro de Heróis e Heroínas da Pátria, que antes possuía apenas como personagens os heróis da pátria.
O grupo revolucionário é preso, remetido à Icó, segue para Fortaleza e, depois, para uma prisão na Bahia. “Eles só foram liberados em 1821 com o Perdão Real (de D. João VI)”.
O cantor cearense Ednardo tem uma música em que relembra os tempos de cárcere de Bárbara de Alencar. A música “Passeio Público” está no disco “Berro” e ele canta que, ao passar pelos “lados das brancas paredes, paredes do forte”, escuta “ganidos de morte vindos daquela janela”. “É Bárbara, tenho certeza”, diz.
O legado do levante
Após o desmonte do movimento instalado no Crato e a prisão de seus organizadores, os cargos definidos na monarquia foram restabelecidos. Os responsáveis pelas prisões foram condecorados.
“Mas José Martiniano volta à vida política, o Tristão Gonçalves inclusive participa ativamente da Independência do Brasil, eles participam da Confederação do Equador, em 1824”, concluiu Luiz Costa.
O historiador atualmente segue pesquisando o tema e estuda os relatos sobre Bárbara de Alencar, que atuou ativamente no levante do Crato, mas nem sempre foi retratada pelos historiadores com o protagonismo que de fato exerceu.
Além da primeira mulher presa política no Brasil, ela também foi vítima de violência política de gênero, sendo acusada de amasia (concubinato) devido à sua amizade com o vigário-geral do Crato, Padre Miguel Carlos da Silva Saldanha.