Lei Joca: qual o papel da política na segurança de animais em voos no Brasil

Tragédia demanda esforços de órgãos federais e do Legislativo

Ao menos 15 novos projetos de lei sobre segurança animal em voos chegaram ao Congresso Nacional desde a morte do cachorro Joca, no último dia 22, após ser enviado ao Ceará ao invés do Mato Grosso pela companhia aérea Gol. A iniciativa dos parlamentares tenta dar coro à uniformização de regras no País sobre o assunto, tendo em vista que, hoje, são as empresas que decidem as normas para a execução do serviço, considerando as diretrizes editadas pela Agência Nacional de Aviação Civil (Anac). 

O regramento da Anac dispõe apenas sobre as bases do traslado de animais de estimação ou de apoio emocional – aqueles de relação doméstica, não agressivos e que servem de suporte para condições específicas de saúde mental, no segundo caso –, mas libera as companhias para delinearem o serviço como quiserem.

Por exemplo, as empresas não são obrigadas a levar os pets nas viagens. Mesmo oferecendo o serviço de transporte pago, elas podem negar, de última hora, o embarque dos animais, com o aval da Anac e em casos específicos indicados pela agência.

Outro destaque é a inspeção do pet antes do embarque, que é obrigatória, mas a agência não detalha como deve ser feita. É a companhia aérea, também, quem define se eles viajarão na cabine de passageiros ou no porão da aeronave, bem como o limite de peso, o tamanho da caixa de transporte, as taxas necessárias e os documentos que devem ser apresentados.

Vale ressaltar que há regras específicas para o transporte de cães-guia, regulamentado por decreto de 2006 e por resolução da Anac de 2023. Nesse caso, eles podem voar gratuitamente, no chão da cabine da aeronave, ao lado de seu tutor e sob seu controle, equipado com arreio e dispensado do uso de focinheira.  

Com normas tão frágeis sobre suporte aos pets nos aeroportos, especialistas acreditam que houve maus tratos no caso Joca, pelo menos com base nas primeiras informações.

“Não há dúvida sobre os maus tratos. Aquele animal foi tratado como uma carga. Eles pegam o animal, colocam no mesmo setor de carga. Ali, já induz ao erro. Ele se tornou invisível naquele cenário operacional. Ele foi impedido de se alimentar, de se locomover, foi submetido a altos níveis de estresse, de medo, de dores de todas as formas”, alerta Georgia Carioca, presidente da Comissão de Direito dos Animais da Ordem dos Advogados do Brasil - Seção Ceará (OAB-CE).

Diante dessas lacunas e de outras queixas de tutores e de associações pelo bem-estar animal, o episódio envolvendo o cão Joca ganhou repercussão e pressionou o Congresso pelo andamento de um novo regramento, desta vez mais específico, uniforme e acolhedor a pets e cuidadores.

Em busca de regulamentação

Em casos já julgados, a Justiça entendeu que os animais são seres dotados de senciência, ou seja, percebem e reproduzem emoções, inclusive as negativas, como dor, medo, estresse, entre outras. Para muitos juristas, esse é um ponto de partida para entender os animais como sujeitos de direito, mas a discussão não deveria se limitar a isso. 

“Não deveria ser importante só no quesito da senciência. A gente devia entender que a gente tem que ter compaixão independente da consciência, até porque nós temos seres humanos que estão sem consciência transitória ou não tiveram a vida toda e nem por isso merecem menos consideração”, observa. 

Todo o regramento sobre transporte animal ou outros direitos deve ser pensado com essa premissa, defende a advogada. Ela argumenta, ainda, que o Legislativo inicie um debate efetivo e sério sobre regulamentação, enquanto a Anac revisa seus protocolos sobre o assunto, a fim de garantir medidas permanentes de proteção e o bem-estar dos pets. 

“Sempre que essas tragédias são veiculadas, a população fica bastante comovida, mas nós temos memória curta. É por isso que o avanço na proteção jurídica dos animais e dos seus tutores, que vivem as dores da tragédia, (é importante), mas não ocorre uma mudança substancial na legislação”, afirma. 

Algumas iniciativas do Legislativo têm abordado as bases do direito animal, e o próprio anteprojeto do Código Civil traz novidades nesse sentido. No texto elaborado por uma comissão de 38 juristas ao longo de oito meses – com trabalhos finalizados em abril deste ano – contém mais de mil artigos, dentre os quais estão os seguintes, sobre o tema:

Art. 91-A. Os animais são seres vivos sencientes e passíveis de proteção jurídica própria, em virtude da sua natureza especial.  § 1º A proteção jurídica prevista no caput será regulada por lei especial, a qual disporá sobre o tratamento físico e ético adequado aos animais.  § 2º Até que sobrevenha lei especial, são aplicáveis, subsidiariamente, aos animais as disposições relativas aos bens, desde que não sejam incompatíveis com a sua natureza, considerando a sua sensibilidade.

O movimento não é recente no Parlamento: entre 2019 e 2022, o projeto de lei do ex-deputado Ricardo Izar (PSD/SP) avançou no Congresso e foi aprovado com alterações no Senado, demandando nova tramitação pela Câmara. O texto reconhecia os animais domésticos e silvestres como seres sencientes de natureza jurídica sui generis, sendo “sujeitos de direitos despersonificados, dos quais podem gozar e obter a tutela jurisdicional em caso de violação, sendo vedado o seu tratamento como coisa”. 

Na terceira fase de análise parlamentar, chegou a ser relatado pelo deputado Célio Studart na Comissão de Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável, mas foi retirado de pauta pela então presidente Carla Zambelli (PL-SP) para ser apreciado pela Comissão de Agricultura, Pecuária, Abastecimento e Desenvolvimento Rural. Depois disso, recebeu novos relatores, mas está paralisado na Câmara desde o ano passado.

Para o momento atual, sobretudo após a tragédia envolvendo o cachorro Joca, parece mais possível tocar mudanças nessa seara, tendo em vista a pressão popular. 

Ainda que a pauta do Congresso esteja ocupada com a análise dos vetos presidenciais na próxima semana, o deputado cearense Célio Studart (PSD) acredita que algumas propostas sobre proteção animal em voos possam ser pautados pelo presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), nos próximos dias.

“Mesmo que tenha que aprovar qualquer um desses projetos com alguma celeridade, a gente quer. Qualquer vitória é importante nesse momento como uma resposta rápida”, avalia. 

Mobilização parlamentar  

A discussão já foi iniciada em âmbito federal, com reuniões entre o tutor de Joca, João Fantazzini, o Ministério de Portos e Aeroportos, a Anac e parlamentares. Segundo o deputado federal Célio Studart, que acompanhou os encontros, a expectativa é que o Congresso crie um grupo de trabalho (GT) ou uma comissão especial para analisar com mais urgência os projetos já apresentados acerca da problemática.

De toda forma, acredita que o debate deve andar no Congresso a partir da próxima semana, com ou sem colegiados específicos.  

O objetivo é aglutinar os novos e antigos projetos sobre o assunto e formar uma ou mais propostas com regramentos não apenas sobre a modalidade de transporte em si, mas também sobre as condições de bem-estar animal nos aeroportos, entre outros postos Brasil afora.

O deputado admite, contudo, que não será possível avançar com todas as mudanças pretendidas no momento. Por exemplo, em conversa com a Anac, Célio entendeu que é “quase impossível” acabar com o transporte de animais no bagageiro, mas que ocorrências podem ser reduzidas. 

“É possível que a gente não consiga zerar (o transporte nos bagageiros), mas a gente quer criar uma regulamentação para que, em grande parte dos casos, diminua. Aí eles vão poder ir em cima também na cabine, com os protocolos corretos e unificados, porque hoje cada companhia usa o seu próprio protocolo”, explicou Célio.

“A gente teria que criar um protocolo único, independente de quem fosse. E como nós vivemos num livre mercado, a companhia pode fazer esse translado de animais, mas ou aceita esse (novo) protocolo, ou não pode oferecer o serviço. Dessa forma, a gente teria mais segurança, teria menos animal em bagageiro”, completou.

Reação

Após a tragédia com o cão Joca, a Anac também reagiu e abriu um processo de participação social em 29 de abril sobre o assunto. As contribuições populares ao novo regramento podem ser feitas até o dia 14 de maio, por meio de formulário eletrônico disponível na página de consulta setorial do órgão.

Também podem participar as companhias aéreas e integrantes do setor em geral. Na última quinta-feira (2), a agência realizou uma audiência pública para discutir novas regras para o transporte aéreo de animais em voos domésticos e internacionais. 

Em 2023, segundo dados das empresas de transporte aéreo, cerca de 80 mil animais voaram em aeronaves comerciais. Destes, aproximadamente 90% foram na cabine de passageiro.