A crise política brasileira ganhou contornos institucionais preocupantes na última semana diante de uma escalada de declarações divergentes entre autoridades da República, inclusive de um dos comandantes das Forças Armadas.
A movimentação do cenário nacional, com denúncias de corrupção, CPI da pandemia, pesquisas eleitorais e debate sobre o voto impresso, foi o estopim para um novo acirramento nas relações entre Legislativo, Executivo e Judiciário.
A troca de declarações entre os três poderes ocorreu simultaneamente a uma ameaça – ou “advertência” – feita pelas Forças Armadas a congressistas, o que tensionou ainda mais os ânimos em Brasília e acendeu, novamente, um alerta sobre os riscos de ruptura democrática, apontam cientistas políticos.
A semana começou tensa com as repercussões de denúncias como o caso da compa da vacina Covaxin, o que fez o presidente Bolsonaro disparar críticas e até ofensas a parlamentares. Com uma das principais bandeiras de campanha sendo combate à corrupção, Bolsonaro reagiu e gerou repercussões.
Para Glauco Peres, professor do Departamento de Ciência Política da Universidade de São Paulo (USP), a reação agressiva do chefe do Executivo contra o Legislativo é uma estratégia para amenizar o desgaste diante do seu eleitorado mais fiel.
“Foram denúncias envolvendo membros de apoio do Executivo, elas têm importância, mas acho que o presidente possui um discurso preparado para uma parcela do eleitorado não se influenciar por esse tipo de notícia. Por um lado, ele vai dizer que é uma conspiração, por outro, dirá que foi traído por essas pessoas, que não sabia do esquema”.
Desgaste constante
Como previsto, a CPI da Covid-19 tem sido motivo de constante desgaste ao presidente. Em resposta, os parlamentares da oposição viraram o principal alvo das declarações de Bolsonaro. Desde que o suposto esquema da compra de vacinas veio à tona, o presidente já chamou os parlamentares do G7 (grupo majoritário que reúne senadores da oposição e independentes) de “bandidos”, os acusou de serem mentirosos.
Segundo Peres, essa base mais fiel e radical aos ideias do presidente só será afetada diante de evidências ainda mais claras. “Ele está convivendo com desgastes cada vez maiores e com denúncias que são caras ao eleitor dele, mas, ao mesmo tempo, parte dos eleitores só se deixará afetar por algo muito evidente, descarado, que coloque o presidente no centro do esquema”, acrescenta.
Manifestação nas ruas
O clima desfavorável para o Governo contou ainda com outro elemento: as manifestações. Paralelamente, pesquisas indicaram que o presidente enfrenta seu momento de menor popularidade.
Segundo o cientista político e professor da Universidade Estadual do Ceará (Uece), Emanuel Freitas, diante de todos esses elementos desfavoráveis ao Governo, faz parte da estratégia do presidente tensionar ainda mais o clima.
“Sempre que se encontra emparedado ele radicaliza, é uma regularidade. Conforme novos elementos vão surgindo, ele vai arregimentando o discurso de maior agressividade”.
Forças Armadas x Senadores
Não bastassem as tensões com o chefe do Executivo nacional, o Legislativo também virou alvo das Forças Armadas. Após declarações do presidente da CPI da Covid-19, senador Omar Aziz (MDB-AM), o Ministério da Defesa reagiu.
“Os bons das Forças Armadas devem estar muito envergonhados com algumas pessoas que hoje estão na mídia”, disse Aziz, ao citar Roberto Dias e o general Eduardo Pazuello.
A resposta veio de forma institucional pelas Forças Armadas, que enxergaram nas falas de Aziz uma acusação direta.
“Essa narrativa, afastada dos fatos, atinge as Forças Armadas de forma vil e leviana, tratando-se de uma acusação grave, infundada e, sobretudo, irresponsável”, disse em nota, o ministro da Defesa, general Braga Netto, e os chefes das três Forças.
Intimidação
A nota foi interpretada pelos senadores como uma resposta desproporcional e uma tentativa de intimidação.
A escalada de tensão entre o Legislativo e os militares piorou com uma entrevista concedida pelo comandante da Aeronáutica, o brigadeiro Carlos Almeida Baptista Júnior, ao jornal O Globo. Ele reafirmou o tom de ameaça. “É um alerta. Nós não enviaremos 50 notas para ele (Omar Aziz). É apenas essa”, disse.
Para Emanuel Freitas, a reação dos militares satisfez os interesses do presidente, que “anseia por uma ruptura democrática”.
“Para o presidente, a democracia é a vontade dele, uma eleição limpa é uma eleição em que ele saia vencedor. E parte desse Governo é das Forças Armadas”.
“Ele (Bolsonaro) gosta da tensão, do enfrentamento, da ruptura. O grande sucesso dele é quando a situação está caótica, o Governo funciona na medida em que as coisas não funcionam, é parte da narrativa dizer que o sistema não o deixa governar, então a tensão contribui para isso”.
“Assunto encerrado”
Na tentativa de apaziguar os ânimos, entrou em cena o presidente do senado, Rodrigo Pacheco. Em entrevista na última sexta (9), ele destacou que o assunto já foi “esclarecido e encerrado”.
“Quero aqui afirmar a independência do Parlamento brasileiro. A independência do Congresso Nacional, que não admitirá qualquer atentado a esta sua independência e, sobretudo, às prerrogativas dos parlamentares: de palavras, opiniões e votos, que naturalmente devem ser resguardados em uma democracia”.
De volta ao voto impresso
Ao mesmo tempo em que tentou abrandar o clima com os militares, o presidente do Senado reagiu de forma dura às falas do presidente Bolsonaro sobre as eleições. Tanto Pacheco quanto o presidente do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), o ministro Luís Roberto Barroso, rebateram ameaças.
“Nós não podemos admitir qualquer tipo de fala, de ato, de menção que seja atentatória à democracia ou que estabeleça um retrocesso naquilo que, repito, a geração antes da minha conquistou e que é nossa obrigação manter, que é a democracia no nosso País”, afirmou Pacheco.
Nas últimas semanas, Bolsonaro voltou a defender constantemente o voto impresso. Nos últimos dias, tais declarações passaram a apontar também supostas fraudes no sistema eleitoral. O presidente, no entanto, não apresentou provas para as acusações.
Na verdade, ele passou a atacar o presidente do TSE, a quem chamou de “idiota” e “imbecil”. Bolsonaro também ameaçou que as eleições do próximo ano não ocorram. “Eleições no ano que vem serão limpas. Ou fazemos eleições limpas no Brasil, ou não temos eleições”, disse.
Diante dos ataques, Barroso afirmou que garantirá o pleito. “Qualquer atuação no sentido de impedir a sua ocorrência viola princípios constitucionais e configura crime de responsabilidade”.
Sistema eleitoral
Para o professor Glauco Peres, a reação mais contundente do Legislativo e do Judiciário é justificável e necessária. “Essa situação é mais delicada porque o presidente investe contra uma dimensão do sistema democrático, que é a eleição, onde a vontade do eleitor transforma-se em voto”.
“Neste caso, não podemos dizer que é só mais uma estratégia diversionista, mas sim que ele está disposto a algum tipo de golpe. Ele não tem evidência alguma de que tenha havido fraude, nunca mostrou provas. Se realmente o intuito dele é tergiversar o cenário político, ele está mexendo com algo caro a muitos”.
De tão importante, o sistema eleitoral brasileiro uniu oito partidos políticos em sua defesa. As siglas divulgaram uma nota, no último sábado (8), em defesa da democracia e das eleições.
“Temos total confiança no sistema eleitoral brasileiro, que é moderno, célere, seguro e auditável. São as eleições que garantem a cada cidadão brasileiro o direito de escolher livremente seus representantes e gestores. Sempre vamos defender de forma intransigente esse direito, materializado no voto. Quem se colocar contra esse direito de livre escolha do cidadão terá a nossa mais firme oposição”, afirma o documento assinado pelos presidentes dos partidos Democratas, MDB, PSDB, Novo, PSL, PV, Solidariedade e Cidadania.
Independentemente de quem sairá vencedor em 2022, para o cientista político Emanuel Freitas, os próximos anos serão desafiadores para os atores políticos do País e de muita instabilidade para o sistema político brasileiro. “Vamos dizer que ocorram eleições em 2022, o governante eleito terá muita dificuldade, porque ele terá de dizer a resposta para a crise”, conclui.