Até então mantidas em segredo no ambiente doméstico, as agressões praticadas pelo produtor musical DJ Ivis contra a esposa, Pamella Holanda, foram explicitamente denunciadas no último domingo (11). A repercussão do caso, que já resultou na prisão preventiva do músico, também chegou ao meio político. No Ceará, onde mora o casal, parlamentares repudiaram a conduta do artista e pediram a sua prisão imediata. A detenção do acusado foi, inclusive, anunciada pelo governador do Ceará, Camilo Santana (PT), na última quarta-feira (14).
Em um país onde cerca de 25 mulheres são vítimas de algum tipo de violência doméstica a cada minuto, conforme dados do Inteligência em Pesquisa e Consultoria (Ipec), e em um estado onde uma mulher denuncia violência doméstica a cada cinco minutos, esse caso ganhou destaque.
O Diário do Nordeste ouve analistas políticos, advogada e sociólogas para entender por que esse caso, entre os mais de 13 milhões ocorridos, em média, anualmente no País, virou assunto entre os políticos. Eles também comentam sobre como essa visibilidade pode ajudar no combate à violência dentro de casa.
Reação imediata
Diante da denúncia de Pamella, uma das primeiras a reagir foi a deputada estadual Augusta Brito (PCdoB), procuradora da Mulher na Assembleia Legislativa do Ceará (AL-CE). Além dela, outras deputadas da bancada feminina também publicaram mensagens de solidariedade à vítima.
"Agredir uma mulher é um ato de extrema covardia e precisa ser punido e combatido com todo rigor da lei", disse Aderlânia Noronha (Solidariedade).
Em repúdio, Dra Silvana (PL) disse estar orando para que a Justiça seja rápida e o músico receba a pena máxima. "Esse tal 'DJ Ivis' agredindo a esposa se acha muito homem. Ridículo", criticou a deputada.
Érika Amorim (PSD) e Fernanda Pessoa (PSDB) pediram para que outras mulheres, em situação semelhante de violência, também denunciem.
Assim como outros colegas deputados, o presidente da Assembleia, Evandro Leitão (PDT), se solidarizou com a situação de Pamella. “Não podemos normalizar ou relativizar a violência doméstica".
Assunto no Legislativo
Na Câmara de Fortaleza, o presidente Antônio Henrique (PDT) e vereadores da Casa também apelaram para que esse tipo de agressão não seja normalizado. “A violência contra a mulher é inconcebível”, disse o pedetista. A bancada feminina do Legislativo municipal se pronunciou.
A presidente da Comissão de Direitos Humanos e Cidadania, Larissa Gaspar (PT), pediu para que “a investigação do caso seja rápida e eficiente e que o agressor seja punido na forma da lei”.
Adriana Nossa Cara (Psol), Kátia Rodrigues (Cidadania), Ana do Aracapé (PL), Cláudia Gomes (DEM), Estrela Barros (Rede), Priscila Costa (PSC) e Tia Francisca (PL) repudiaram as agressões e pediram Justiça.
O prefeito Sarto Nogueira (PDT) também se manifestou.
Na Câmara dos Deputados, a única mulher eleita pelo Ceará, Luizianne Lins (PT), incentivou que outras mulheres denunciem casos de violência doméstica. Na bancada cearense, a maioria dos parlamentares também lamentou o episódio e criticou o músico.
A Secretaria da Mulher da Câmara publicou uma nota de repúdio.
“Deixando consignado que jamais deixará de se pronunciar diante de tais atos e não poupará esforços para combater quaisquer ações de violência e crimes de ódio que buscam ofuscar os recentes anos de conquistas sociais alcançados pelas mulheres”
Nas imagens divulgadas da agressão, captadas por câmeras de segurança, o músico ataca a mulher com socos, chutes e puxões de cabelos. A violência ocorre sem constrangimento, mesmo diante da mãe da vítima, de um motorista do produtor musical e da filha de 9 meses do casal.
Nas redes sociais, Pamella publicou imagens de hematomas nos olhos, na boca, nos dedos e nas pernas. Também nas redes sociais, o artista alegou que a esposa ameaçava cometer suicídio e o chantageava, por isso ele a atacou. Ele também pediu desculpas pelas agressões em vídeo gravado pouco antes da prisão.
Comoção política
Para a cientista política Monalisa Soares, professora da Universidade Federal do Ceará (UFC) e pesquisadora do Laboratório de Estudos sobre Política, Eleições e Mídia (Lepem), fatores como a reincidência do agressor, as filmagens dos ataques e a violência dos atos, com testemunhas – e diante da filha do casal –, geraram maior comoção sobre o caso.
“Essa questão da violência de gênero também vem ganhando constante atenção da opinião pública pelo fortalecimento dos movimentos feministas, então é um tema que, cada vez mais, ganha repercussão e os agentes públicos são estimulados a tomar um posicionamento, eles precisam dar um retorno político porque o tema é uma demanda social”, afirma.
A opinião é compartilhada pela advogada e doutoranda em Direito das Mulheres, Jéssica Teles.
“(Somou-se) a exposição virtual do caso, os agentes envolvidos, a cena que choca, é muito cruel e explícita, o espaço que teve na mídia e a omissão daquelas pessoas que viram as agressões, então foi um caso chocante e repercutiu por essa série de elementos, foi assim que o debate político ascendeu”
“Mas há outros fatores políticos também. Por exemplo, se um político se posiciona, o da oposição também vê ali uma necessidade de comentar. E não acho que isso não seja genuíno, mas é uma apropriação da pauta. Aquilo viralizou, o Estado foi cobrado sobre denúncias anteriores, então havia uma necessidade de que os agentes envolvidos se posicionassem, o caso foi auditado sobre o porquê se chegou até aquele ponto, então isso explica alguns posicionamentos”, avalia a jurista.
Com o caso repercutindo nacionalmente, qualquer erro, paralisação ou demora nas investigações indicariam fragilidade das autoridades, afirma a advogada.
Prisão anunciada
Menos de 24 horas após as denúncias, o governador Camilo Santana publicou uma nota nas redes sociais em que classifica como “repugnantes” e “inaceitáveis” as agressões praticadas por DJ Ivis. “Que esse caso de Pamella e todos os outros casos de violência contra mulher, que ocorrem todos os dias, recebam a punição devida, e as vítimas tenham o respeito e o acolhimento necessários”, disse.
Veja o momento da prisão:
Na quarta-feira (14), o chefe do Executivo estadual voltou a comentar o caso ao anunciar a prisão do acusado. “Acabo de ser informado pelo nosso secretário de Segurança da prisão do DJ Ivis, no caso das agressões a Pamella Holanda. A prisão preventiva havia sido solicitada ontem pela nossa Polícia Civil e decretada há pouco pela Justiça. Que responda pelo crime cometido”, concluiu.
A cientista política Monalisa Soares destaca o engajamento de políticos dos mais variados espectros.
“Ainda que a direita tenha uma visão mais conservadora sobre o tema, mais relacionada à defesa da família, o tema da violência é muito sensível, é difícil alguém defender que uma mulher tenha sua vida permeada pela violência. Mesmo as bancadas femininas, que reúnem mulheres de vários estratos, têm o combate à violência como pauta unificadora”
Para Jéssica Teles, mais que um assunto em comum, esses diferentes agentes políticos têm respostas que buscam coerência com outras bandeiras defendidas por eles. “Por todos os vieses políticos se tinha uma resposta: ou da família, ou da arma, ou da violência contra a mulher, ou do direito à dignidade”, lista.
“Tanto que vimos muitas declarações com frases como ‘em mulher não se bate nem com uma flor’ ou coisas nesse sentido, que reproduzem um pouco do patriarcado sob o viés do cuidado, não da igualdade”
Denúncia incontestável
Diante disso, para a advogada, o cenário seria bem diferente se não houvesse um vídeo mostrando essas agressões. “Se fosse só a palavra dela, certamente haveria resistência de alguns em acreditar. Apesar de, juridicamente, um vídeo ser uma prova contestável, por isso se pede perícia e há uma validação processual, o indício ali é forte, tanto que justificou o pedido de prisão preventiva”, acrescenta.
É essa “resistência de alguns em acreditar” que, segundo Socorro Osterne, impede que muitas vítimas tenham coragem de denunciar seus agressores.
“Se não tivesse sido gravado, ela iria enfrentar uma batalha insana para provar que era verdade o que estava dizendo. O vídeo trouxe cenas fortes e explícitas que impactaram a sociedade. Se não fosse isso, seria mais um caso”, afirma a professora e pesquisadora do Núcleo de Atendimento Humanizado às Mulheres em Situação de Violência da Universidade Estadual do Ceará (Uece).
A violência doméstica em números
A pesquisa realizada pelo Ipec, citada no início desta reportagem, indica algumas dessas barreiras enfrentadas pelas vítimas até a denúncia e mostra ainda que a situação se agravou na pandemia.
O levantamento foi realizado com 2.002 pessoas entre os dias 19 e 23 de fevereiro deste ano. As mulheres responderam perguntas sobre saúde, emprego, atividades domésticas e violência.
Conforme os dados coletados, 15% das mulheres brasileiras (com mais de 16 anos) disseram ter sofrido algum tipo de violência, seja física, psicológica ou sexual, no ambiente doméstico durante a pandemia.
Vítimas de violência doméstica durante a pandemia
As agressões verbais representam 12% dos casos, ou 10,7 milhões de vítimas. Quando a pergunta foi sobre agressões físicas, 6% das entrevistadas responderam que sofreram com esse tipo de violência dentro de casa. O valor equivale a 5,3 milhões de mulheres.
No caso de assédio sexual, o percentual foi de 3%, mesma porcentagem daquelas que se disseram ameaçadas por armas de fogo ou facas, e também das que declaram ter sido obrigadas a ter relações sexuais com o companheiro.
No Ceará, conforme noticiou o Diário do Nordeste na semana passada, as denúncias enfrentam subnotificações porque as vítimas temem pela própria segurança. Ainda assim, os dados são alarmantes: a cada uma hora, duas mulheres denunciam os agressores às autoridades do Ceará. De janeiro a junho deste ano, foram 8.960 vítimas nos registros da Secretaria de Segurança Pública e Defesa Social (SSPDS).
Impactos práticos
Para a cientista política Monalisa Torres, a atenção que casos como esse têm de agentes públicos é importante, mas precisa se transformar em ações práticas.
“O fim da violência contra as mulheres é algo que envolve um conjunto de ações complexas, não basta dizer que é contra, são ações institucionais, política pública para amparar, mas também polticas informacionais, que possam enfrentar essa cultura que legitima a lógica de dominação masculina”, conclui.
Socorro Osterne exalta os avanços na assistência às vítimas. “Temos uma política nacional de direito das mulheres. No caso do Ceará, temos uma rede de atendimento que se consolida dentro da Casa da Mulher Brasileira, uma casa bem pensada que tem uma complexidade de atendimento”, afirma.
“Mas esse tipo de denúncia, como a da Pamella, repercute em políticas públicas, até no aprimoramento da legislação. As leis do Feminicídio e Maria da Penha são muito bem elaboradas, o que às vezes deixa a desejar é a retaguarda, o encaminhamento, muitas mulheres precisam ficar abrigadas quando estão com medidas protetivas, e muitas vezes não há uma rede ampla de proteção”
Do discurso até a prática
Conforme reportagem publicada na última semana, dezenas de projetos de lei que beneficiam mulheres vítimas de violência foram apresentados e alguns, aprovados na Assembleia Legislativa do Ceará e na Câmara Municipal de Fortaleza, na atual legislatura.
Apesar da existência dessas propostas, nem todas saem do papel e são efetivamente implementadas. No caso do Legislativo estadual, foram 11 projetos de lei aprovados pelos deputados estaduais, de 2019 até agora, relacionados às mulheres e às questões de violência de gênero.
No Legislativo municipal, chega a 20 o número de matérias apresentadas, neste ano, sobre pautas relacionadas às mulheres, a maior parte delas trata do combate à violência. Já no Legislativo federal, a bancada cearense apresentou 114 propostas, na atual legislatura, relacionadas às mulheres.
Como denunciar
Casos de violência doméstica podem ser denunciados em distritos policiais e delegacias especializadas. Há ainda uma rede assistencial:
Disque 180
Exclusivo de atendimento à mulher, o número presta apoio e escuta mulheres em situação de qualquer tipo de violação ou violência de gênero.
Delegacia de Defesa da Mulher
Na Capital, a delegacia especializada fica no complexo da Casa da Mulher Brasileira, no Bairro Couto Fernandes. Há Delegacias de Defesa da Mulher nas cidades de Pacatuba, Caucaia, Maracanaú, Crato, Iguatu, Juazeiro do Norte, Icó, Sobral e Quixadá.
Endereço: Rua Tabuleiro do Norte, s/n, Bairro Couto Fernandes
Telefone: (85) 3108-2950
Casa da Mulher Brasileira
Equipamento do Governo do Estado, atua no atendimento às mulheres que foram vítimas de violência em Fortaleza. No mesmo espaço, funciona a Delegacia de Defesa da Mulher (DDM), o Juizado de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher, uma unidade do Ministério Público e uma da Defensoria Pública, além de um centro de referência municipal.
Na Casa da Mulher, também são ofertados cursos de capacitação profissional dentro da Promoção da Autonomia Econômica, bem como alternativas de abrigamento temporário e espaço infantil para as crianças que estejam acompanhando as mães em atendimento.
Horário de atendimento: 24 horas por dia
Endereço: Rua Teles de Sousa, s/n, Bairro Couto Fernandes
Telefone: (85) 3108-2968
Centro de Referência Municipal Francisca Clotilde
Em Fortaleza, é disponibilizado o Centro de Referência e Atendimento à Mulher em Situação de Violência Francisca Clotilde. O espaço promove acompanhamento e encaminha as vítimas aos serviços da rede de atendimento, acolhendo mulheres que sofreram violência psicológica, sexual, física, moral, patrimonial, abuso, exploração, assédio moral e tráfico de mulheres.
Horário de atendimento: Segunda a sexta-feira, das 8h às 20h.
Endereço: Rua Teles de Sousa, s/n, Bairro Couto Fernandes
Telefone: (85) 3108-2968