Declaração inédita: Ceará registra 83 candidaturas quilombolas para as Eleições 2024

É a primeira vez que os concorrentes podem manifestar pertencimento ao grupo étnico-racial no sistema da Justiça Eleitoral

O Ceará registrou a candidatura de 83 quilombolas para as Eleições 2024. O índice representa 0,63 % do total de cadastros no Estado para a votação de outubro, que ultrapassou a marca de 13 mil neste ano, de acordo com dados do Tribunal Superior Eleitoral (TSE).

O pleito de 2024 apresenta um fator inédito: pela primeira vez os postulantes aos cargos do Executivo e Legislativo municipais puderam declarar o pertencimento ao grupo étnico-racial. Com isso, não é possível comparar os números de 2024 com os de outras eleições por meio dos dados do TSE. 

Mesmo assim, a Coordenação Nacional de Articulação de Quilombos (CONAQ) aponta que já é possível notar uma maior presença quilombola na corrida eleitoral. É o que explica Aurila Maria de Sousa Sales, coordenadora nacional da entidade e líder quilombola da Comunidade de Nazaré, em Itapipoca, no interior do Ceará.

“Nossas candidaturas quilombolas vêm crescendo a cada pleito eleitoral. Não da forma que desejamos, mas considero um número bom, pois são muitas dificuldades em ser aceito ou aceita sua candidatura nos partidos eleitorais. Tem todo um jogo de cintura para conseguir e muita sabedoria para fazer a campanha e conquistar votos”
Aurila Sales
Coordenadora nacional da CONAQ, líder quilombola, professora e técnica pedagógica na Secretaria Municipal de Educação de Itapipoca

Ainda de acordo com a coordenadora, a CONAQ está finalizando o mapeamento das candidaturas nos estados. A partir daí, o objetivo é "elaborar estratégias, pois pretendemos fazer um trabalho a fundo para buscar eleger nossos candidatos", enfatiza a líder quilombola. 

Dentro das candidaturas do grupo étnico-racial no Ceará, três são para o cargo de prefeito, enquanto 78 concorrem para a função de vereador. Desse total, 50 são homens (60,24%), enquanto 33 são mulheres (39,76%). Não há postulantes quilombolas na posição de vice-prefeito nas chapas. 

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RECONHECIMENTO HISTÓRICO

Quilombola, antropólogo e doutorando em Antropologia Social (UFG), Jeovane Ferreira analisa como importante esse movimento de autodeclaração adotado pela primeira vez para as eleições. Ele avalia que a medida dá um destaque nacional às demandas da população quilombola, em especial por meio da conquista de espaço no debate público e político.

“Esse reconhecimento rompe aos poucos com a lógica operante do racismo estrutural e, em especial, o cenário de sub-representação quilombola, que pode se ver representada nessa instância, impulsionando até mesmo o crescimento gradual de novas candidaturas”, afirma. 

O pesquisador também vê essa crescente como uma alternativa de enfrentamento às desigualdades históricas. Além disso, a tendência representa uma resposta em relação ao enraizamento do movimento quilombola e sua potência em termos de organização política.

“A participação de candidatos e candidatas quilombolas no pleito eleitoral representa um passo muito importante no que concerne à representatividade política desse grupo étnico-racial que secularmente esteve em condição de invisibilidade. Não apenas põe em cheque a luta por direitos mais amplos que se contrastam com as demandas públicas mais focalizadas, como também aquelas que são de ordem mais específica, como uma educação diferenciada, valorização cultural e outras pautas que podem ser defendidas por quem vive essas realidades. Esse engajamento também fortalece nossa democracia, somando vozes ao cenário político nacional”
Jeovane Ferreira
Quilombola, antropólogo e doutorando em Antropologia Social (UFG)

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REPRESENTATIVIDADE QUILOMBOLA

O Ceará tem o 4º maior número de candidaturas quilombolas no Nordeste, embora ocupe a 6ª posição do ranking de maiores populações desse grupo na região. 

23,9 mil 
quilombolas no Ceará, segundo o Censo 2022/IBGE

Conforme a definição da legislação brasileira, os quilombolas são grupos étnico-raciais autodeclarados, que têm ancestralidade negra relacionada com a resistência à opressão histórica sofrida por essa população e mantêm relações territoriais específicas. 

Aurila Sales celebra o fato do mais recente levantamento do IBGE trazer, pela primeira vez, dados referentes à população quilombola. “É de grande relevância termos conquistado o recenseamento Quilombola através do Censo de 2022 e com isso vem tendo a visibilidade, pois tem o documento que nos oficializa, o que sempre foi negado ou invisibilizado à população Quilombola no Brasil.”

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Eleitores autodeclarados quilombolas no Ceará, segundo o TRE-CE

BUSCAR AVANÇOS

Impulsionar o envolvimento de quilombolas nas eleições passa por um processo de “tomada de consciência política”, principalmente no que diz respeito à “garantia de conhecimento dos seus direitos constitucionais de forma que se possam reivindicar pautas efetivamente concretas”, reconhece Jeovane Ferreira. Outro destaque, avalia o pesquisador, fica por conta do efetivo acesso a recursos financeiros e logísticos para as campanhas.

“A ausência de financiamento dessas candidaturas põe em evidência novamente a continuidade do seu distanciamento desse espaço de poder e decisão política. Para isso, aponto como estratégia a implementação de ações afirmativas dentro dos próprios partidos políticos. Isso, pois há uma profunda desigualdade nessa arena de disputa política, onde as candidaturas quilombolas, especialmente de mulheres, ficam sempre relegadas a um segundo plano”, salienta o antropólogo. 

Já para Aurila, um ponto fundamental desse debate está na sensibilização dos partidos a aceitarem e acreditarem nos candidatos e candidatas do grupo. “Entendemos que todos os espaços são importantes para nós, pois só assim teremos sucessos em nossas políticas públicas e principalmente na política, ocupando os diversos cargos e projetos. Nada sobre nós sem nós”, defende.