De bloqueio de celular à proibição de bebidas: relembre leis aprovadas no Ceará e contestadas no STF

Mais recentemente, decisões da Suprema Corte contrariaram leis cearenses sobre questões administrativas do Judiciário

Bloqueios de celulares em presídios, aposentadorias especiais, bebidas alcoólicas em estádios, vaquejadas, descontos nas mensalidades escolares durante a pandemia. Assuntos bastante distintos, mas que carregam em comum o fato de fazer parte de dispositivos legais cearenses contestados no Supremo Tribunal Federal (STF).

Nos últimos anos, pelo menos dez leis importantes aprovadas no Estado foram parar na Suprema Corte, por meio de Ações Diretas de Inconstitucionalidade (ADIs), que apontam supostas violações da Constituição Federal. 

Até que vire lei, uma matéria deve passar por todo um processo que envolve os poderes Legislativo e Executivo, desde a elaboração e aprimoramento do texto, discussões nas comissões temáticas, encabeçadas pela Comissão de Constituição e Justiça (CCJ), e no próprio Plenário da Assembleia Legislativa, quando o projeto recebe alterações até ser aprovado e enviado para sanção do governador, ainda com possibilidades de vetos.

Todo o rito é acompanhado pelas procuradorias-gerais, tanto da AL-CE como do Governo do Estado, mas não raramente as leis aprovadas no Ceará são questionadas e revogadas pelo STF, fato que levanta questões sobre possível necessidade de aprimorar o processo. 

Na reunião da CCJ da AL-CE, na terça-feira (5), por exemplo, a pauta incluía a leitura de ofícios do Supremo, comunicando a revogação de trechos de três leis aprovadas no Estado: a que conferia foro privilegiado a defensores públicos do Estado, a que previa limitação de orçamento para o Ministério Público Estadual em 2021 e a que dava liberdade aos procuradores do Estado no acesso a honorários de sucumbência (valores destinados aos advogados da parte vencedora de um processo).

Conversamos com um jurista e com o presidente da CCJ, que tratam as divergências como naturais no Estado Democrático de Direito. Além disso, resgatamos outros sete temas que foram parar na instância máxima da Justiça brasileira pela alegação de que iam de encontro a artigos da Carta Magna: 

Depósitos judiciais  

O depósito judicial é um instrumento legal pelo qual um juiz possibilita o pagamento de uma obrigação financeira dentro de um processo por meio de um depósito de garantia feito pela parte devedora. Uma Lei aprovada em 2015 no Ceará permitia que o Estado usasse 70% desses recursos para custear despesas com saúde e previdência. 

A Lei foi alvo de ação por parte do Conselho Federal da OAB, que apontou violação do devido processo legal com a perda de autonomia do Judiciário sobre a administração dos valores, cuja retirada prejudicaria partes interessadas nos processos de litígio.

No final do último mês, o Plenário do STF decidiu por unanimidade pela inconstitucionalidade da norma, apontando ainda que o Estado invadiu competência da União ao legislar sobre direito financeiro. 

Desconto em mensalidades escolares 

No ano passado, em meio à crise financeira e às incertezas trazidas pela pandemia de Covid-19, o Governo do Estado aprovou a Lei 17.208/20, que concedia descontos de 5% a 30% nas mensalidades de instituições particulares do Estado, em todos os níveis de ensino.

A Confederação Nacional dos Estabelecimentos de Ensino (Confenen) entrou com Ação Direta de Inconstitucionalidade no STF, alegando falta de competência do governo estadual para legislar sobre direito do consumidor, competência exclusiva da União. 

A indefinição já havia tomado boa parte das discussões sobre a matéria na Assembleia, tanto na CCJ como no Plenário. O projeto, aprovado em maio, levou quase um mês e meio para ser aprimorado, após articulações dos deputados com pais de alunos e representantes das entidades escolares.

Em fevereiro deste ano, no entanto, a Lei foi considerada inconstitucional, nove meses depois de aprovada. Por maioria de votos, o STF acatou o argumento das Confenen, de que o Estado havia legislado sobre matéria da União. 

Bloqueadores de celulares 

Em 2016, com objetivo de enfraquecer o comando do crime organizado dentro das penitenciárias, o Ceará aprovou lei que obrigava as empresas de telefonia móvel a bloquear o sinal de celular nas áreas específicas das unidades prisionais do Estado, sob pena de multa em caso de descumprimento.  

 A Associação Nacional das Operadoras de Celular (Acel) entrou com ação no Supremo, alegando violação do trecho da Constituição que estabelece como competência exclusiva da União legislar sobre telecomunicações.  

Outro argumento era que a Lei criava obrigações não previstas anteriormente nos contratos de concessão, em que as empresas tinham como função delegada fornecer o sinal, e não o contrário. A mudança foi suspensa pelo STF naquele mesmo ano. Pelo menos outros cinco estados brasileiros tiveram leis semelhantes contestadas no Supremo. 

Vaquejadas 

Tradicional no interior do Estado, a vaquejada foi regulamentada como “prática desportiva e cultural” no Ceará por Lei aprovada em 2013. Provocado pela Procuradoria-Geral da República, o Supremo entendeu a norma cearense como inconstitucional, em julgamento que teve início em 2015, quando o relator, o ministro Marco Aurélio Mello, julgou a ação procedente. 

Em 2016, o Plenário acatou o princípio constitucional de proteção ao meio ambiente, defendido pelo relator, mais especificamente em relação ao trecho que trata do “sofrimento animal”. A decisão, porém, foi apertada: 6 votos a 5. Em junho deste ano, o STF manteve a inconstitucionalidade, negando recurso da Associação Brasileira de Vaquejada (Abvaq). 

Apoiadores das vaquejadas protestam contra proibição

Aposentadoria especial do TCM 

No ano passado, o STF entendeu como inconstitucional a Emenda 95/2019, aprovada pela Assembleia Legislativa, que criava a “aposentadoria voluntária especial” para ex-conselheiros do extinto Tribunal de Contas dos Municípios do Estado (TCM-CE) postos em disponibilidade. 

Aprovada por 38 votos a 1 pelo Plenário da AL-CE, a emenda permitia aposentadoria sem que os beneficiários cumprissem os requisitos estabelecidos pelo artigo 40 da Constituição Federal, que trata do regime de previdência dos servidores públicos e estabelece, por exemplo, tempo mínimo de dez anos de serviço ou cinco anos no cargo para ter acesso ao benefício. 

O dispositivo abria caminhos para dois ex-conselheiros: Domingos Filho e Hélio Parente. No ano passado, Hélio conseguiu aposentadoria de R$ 15 mil mensais, mais um retroativo de R$ 540 mil. O assunto foi parar no Supremo, após ação movida pelo Solidariedade, por iniciativa do deputado estadual Heitor Férrer.

Em agosto do ano passado, o Pleno do Tribunal confirmou a suspensão da eficácia da emenda, ratificando decisão anterior do ministro Luís Roberto Barroso. O mérito da ação ainda será julgado. 

Extinção do TCM 

A própria extinção do Tribunal de Contas dos Municípios foi alvo de ação no Supremo Tribunal Federal. Dessa vez, a Corte manteve a decisão do Legislativo e Executivo cearenses, mas foi preciso colocar em votação duas PECs para a aprovação final, depois de a primeira ser barrada pela Suprema Corte. Em agosto de 2017, a Assembleia aprovou a fusão do TCM com o Tribunal de Contas do Estado do Ceará (TCE-CE). 

Oficialmente, o Tribunal foi extinto sob o argumento de enxugar despesas do Estado, tese advogada pelo autor da PEC, o deputado de oposição Heitor Férrer (Solidariedade). O apoio da base, entretanto, viria após turbulências políticas na eleição para a presidência da Assembleia no final de 2016, quando grupo ligado ao TCM apoiou a candidatura de Sérgio Aguiar (PDT), em movimento liderado pelos conselheiros Domingos Filho e Francisco Aguiar, pai de Sérgio.   

O candidato do Governo, Zezinho Albuquerque (PDT), venceu a disputa e, ainda no final daquele ano, o Governo aprovaria a primeira PEC de exclusão do TCM, suspensa pouco depois no STF por liminar da ministra Cármem Lúcia, que possíveis prejuízos aos processos em andamento.

A decisão foi tomada após ADI impetrada no Supremo pela Associação dos Membros dos Tribunais de Contas do Brasil (Atricon), com forte atuação do então presidente do TCM Domingos Filho, que não impediria a exclusão definitiva da Corte meses depois. 

Bebidas alcoólicas

Outra Lei cearense discutida na Suprema Corte foi a que voltou a permitir a comercialização de bebidas alcoólicas nos estádios de futebol. De autoria do deputado Evandro Leitão (PDT), a Lei foi promulgada em maio de 2019. A Procuradoria Geral da República (PGR) entrou com ação no STF contra lei semelhante do Mato Grosso. O efeito valeria para os demais estados. Mais uma vez, o Tribunal corroborou com a tese jurídica aprovada no Ceará. 

A alegação da PGR era que o Estatuto do Torcedor, legislação federal, determina como lei “não portar objetos, bebidas ou substâncias proibidas ou suscetíveis de gerar ou possibilitar a prática de atos de violência”.

Em março do ano passado, o Supremo confirmou a constitucionalidade da Lei, com o argumento de que o Estatuto não se refere a nenhum tipo específico de bebida, e que não se pode ligar “categoricamente” o consumo de álcool a atos de violência. 

O que diz a CCJ 

Presidente da Comissão de Constituição e Justiça da Assembleia, o deputado e advogado Romeu Aldigueri (PDT) reconhece a importância de “uma análise e um crivo sempre mais apurado” sobre as leis, mas aponta o direito e a interpretação das normas como “forças dinâmicas e influenciadas por vários e distintos fatores”.  

A ciência do Direito está em constante transmutação, e o Poder Judiciário se atualiza em suas próprias decisões e interpretações, que, por vezes, não são uníssonas; ou seja, diuturnamente se observam conflitos em jurisprudências, o que é fundamental ou salutar. Portanto, o Poder Executivo e o Poder Legislativo Estadual, não obstante, não podem estagnar em suas competências por uma ou outra decisão judicial que seja contrária às suas medidas ou deliberações. Tudo faz parte do Estado Democrático de Direito
Romeu Aldigueri (PDT)
Presidente da Comissão de Constituição e Justiça da AL-CE

Controle de constitucionalidade 

Doutor em História do Direito e coordenador do Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Federal do Ceará (UFC), Gustavo César Cabral afirma que as disputas jurídicas em torno da interpretação da Constituição não são nem novas nem exclusividade do Brasil, mas bastante comuns em países que adotam o modelo de federação, em que os entes nacionais têm autonomia para legislar, mas precisam adotar compatibilidade com a lei mais elevada da ordem jurídica. 

“Isso é algo que acontece, não só no Brasil, basicamente desde que a gente tem essa estrutura de controle de constitucionalidade, pelo menos desde a Constituição de 1891, como pensando por exemplo em dois países cujos sistemas de controle inspiraram o brasileiro: a Alemanha e os Estados Unidos. Então isso não é uma particularidade brasileira”, explica. 

Segundo o pesquisador, nos países que adotam o Estado federalista é inevitável que os questionamentos legais cheguem à Suprema Corte, que faz o que ele chama de “controle repressivo”, nada mais que a verificação dos preceitos constitucionais feita após a lei já ter sido aprovada, mesmo que tenha passado por várias possibilidades anteriores de questionamento. 

“Algumas pessoas questionam o fato de o Poder Judiciário ser o espaço para essa discussão, já que o assunto já passou pelo processo legislativo, onde teve um controle prévio. O próprio poder Executivo pode fazer esse controle também, vetando um projeto de lei alegando inconstitucionalidade. Depois de tudo isso, o Judiciário ainda pode exercer esse controle? Pode e deve.

Outro ponto é que a tese da inconstitucionalidade às vezes custa a se firmar, porque essa percepção do que é a Constituição, materialmente falando, também pode demorar um pouco a se concluir”, argumenta o professor.