Como as contestações das eleições de 2014 e 2022 impactam a democracia brasileira

Nos dois anos, os candidatos derrotados nas disputas ao Planalto pediram novas auditorias e até anulação do pleito

Em mais uma tentativa de descredibilizar o processo eleitoral, o PL, partido do presidente Jair Bolsonaro, apresentou um pedido ao Tribunal Superior Eleitoral (TSE) de invalidação dos votos de mais de 250 mil urnas, quase 60% dos aparelhos usados em outubro deste ano. 

O presidente da Corte, Alexandre de Moraes, negou a solicitação de verificação extraordinária devido à ausência de indícios ou provas de fraude que justifique a medida. Além disso, impôs multa ao partido de quase R$ 23 milhões por litigância de má-fé, quando se aciona a Justiça sem elementos convincentes.

O pedido do PL ocorreu após meses de ofensivas contra o sistema eletrônico de voto por parte de Bolsonaro, que foram refeitas por aliados e apoiadores após sua derrota para Lula (PT), no último dia 30. 

 A postura dos dirigentes repete o que ocorreu há duas eleições gerais, em 2014: Aécio Neves (PSDB), que perdeu o pleito à presidência da República para Dilma Rousseff (PT) por uma pequena diferença – a segunda menor desde 1989 – também contestou o resultado das urnas.

Naquele ano, o coordenador jurídico da sua campanha, o então deputado Carlos Sampaio (PSDB-SP), pediu ao TSE uma auditoria a fim de verificar a "lisura" do processo, com a criação de uma comissão com membros da Corte e de outras legendas para tal.

Não à toa, o pleito de 2014 tem sido alvo retórico do presidente. Em live durante o segundo turno, Bolsonaro comparou a evolução dos votos durante as apurações do segundo turno da reeleição de Dilma Rousseff (PT) e do primeiro turno deste ano.

“Até o gráfico da evolução, que foi feito aqui levando-se em conta cada percentual de voto que era computado, criou uma figura geográfica uniforme, né? Bem típica de algoritmos. Muito parecida com aquela do turno de 2014 com Aécio Neves”, disse na ocasião. O mandatário não mencionou que a auditoria, à época, não detectou fraude.

Mas isso não ficou só no campo verbal. As Forças Armadas recentemente solicitaram ao TSE todos os arquivos das eleições gerais desde 2014, como boletins de urnas e os logs dos aparelhos, para “esclarecer e conhecer os mecanismos do processo eleitoral com a finalidade de permitir a execução das atividades de fiscalização do processo eleitoral".

O pedido foi negado pelo TSE sob a justificativa de que entidades fiscalizadoras do pleito, como as Forças Armadas neste ano, não têm competência para fazer esse tipo de análise sobre os processos dos anos anteriores.

Como indica Emanuel Freitas, professor de Teoria Política da Universidade Estadual do Ceará (Uece), a interferência de agentes da Defesa nesse caso não é à toa. No seu entendimento, Bolsonaro deu protagonismo aos militares, tornando-os “atores importantes no jogo político”, o que não ocorria desde a redemocratização. 

“Naquele tempo, houve uma mácula da imagem das Forças Armadas por causa do período militar. Obviamente eles são gratos não só por isso, mas por benesses, aposentadoria, cargos. Como segmento, eles apostaram muito no governo, então o naufrágio do governo é a derrota deles também”, aponta.

Impacto no processo democrático

Para o presidente da Comissão de Direito Eleitoral da Ordem dos Advogados do Brasil - Seção Ceará (OAB-CE), Fernandes Neto, a postura de Bolsonaro e de seus aliados tenta resgatar o pânico de fraude eleitoral que existe no imaginário histórico brasileiro devido ao período da República Velha – quando o sufrágio ocorria em papel – em que o voto de cabresto era comum. 

Segundo o advogado, a iniciativa compõe um processo sistemático de crise entre o Executivo e o Judiciário. “Esse processo de descredibilidade contra a Justiça Eleitoral e o Poder Judiciário como um todo é uma das bases de um regime populista reacionário imposto não só no Brasil como em outros países, como os Estados Unidos”, avalia. 

“É uma mensagem antissistema de extrema direita. Eu vejo essa questão a respeito da legalidade do nosso processo eleitoral muito ruim para a nossa democracia, que tem 34 anos, mas acredito na fortaleza das nossas instituições. Nesse aspecto, o STF e o TSE têm reagido à altura da gravidade da nossa violação constitucional”, afirma.

A mudança de postura da direita nos últimos anos, que adotou uma face mais “rebelde”, começou nos protestos de 2013 e, depois, no questionamento das eleições de 2014. É o que diz Emanuel Freitas.

Ele explica que, há nove anos, houve “uma contestação da ordem imposta e quem foi penalizado era quem estava no poder, o PT, então a direita que capitalizou os movimentos de 2013. Mas a sina de contestação perdurou e produziu uma eleição altamente polarizada no ano seguinte”.

À época, a força política de maior expressão da direita – que se radicalizou anos depois, dando força a Bolsonaro – era Aécio. “Ele deu a senha para a possibilidade de um partido que vive na democracia, que conquista cadeiras na democracia, a questionar o resultado eleitoral do qual ele foi beneficiário”, aponta Freitas.

Do interno para o externo

O PL, antes identificado como “centrão”, passou a acomodar cada vez mais aliados do presidente da República com a sua filiação no fim do ano passado, consolidando uma identidade cada vez mais alinhada a Bolsonaro (e ao bolsonarismo). Este é classificado pelo professor da Uece como “um fenômeno político de extrema direita que não compactua com a democracia a não ser que ela lhe dê a vitória”.

Com a mudança de perfil na legenda e derrota do PL na disputa ao Planalto, o presidente nacional da sigla, Valdemar Costa Neto, sentiu a necessidade de avalizar as tendências de contestação do bolsonarismo e levá-las à Justiça Eleitoral, pedindo a anulação do processo. É o que afirma Freitas.

“O questionamento legal não é feito pelo presidente, nem pela coligação, como foi em 2014. Ele terceirizou isso, embora se saiba que ele está à frente. O Valdemar já está tentando prestar contas à parcela bolsonarista do partido”, diz, evidenciando como uma questão interna do bolsonarismo pautou debates externos na Justiça Eleitoral, o que também é danoso.

Análise técnica

Como explica Fernandes, a demanda de Bolsonaro seria legítima se ficasse restrita à análise técnica e não apelasse para a sugestão de anulação de votos ou contestação do resultado. Isso porque todos os partidos também são entes fiscalizadores do processo eleitoral.

Por isso o especialista achou acertada a decisão do ministro Moraes de não aceitar o pedido do PL. Além disso, apontou uma incongruência no requerimento do partido do presidente: “Não há como dissociar eleição do primeiro e do segundo turno, até porque só vai para o segundo os candidatos eleitos nas mesmas urnas do primeiro turno”, disse Fernandes Neto.

“Essas urnas que tratam de 2009 até 2015 (objetos de questionamento do PL) tiveram efetiva participação das instituições em 2022, 2020, 2018 e 2016. Então essas mesmas urnas que não são consideradas agora idôneas pelo PL já fazem parte do nosso processo histórico-eleitoral”, apontou Fernandes.