Uma licitação para registro de preço, homologada em dezembro do ano passado, faria o Ministério do Desenvolvimento Regional (MDR) enviar a municípios cearenses maquinários pesados com sobrepreço de R$ 12,6 milhões. Ao todo, seriam 162 equipamentos adquiridos pelo Governo Federal, entre pás carregadeiras e motoniveladoras, divididos em dois lotes, ambos com valores inflados.
Os recursos seriam enviados aos municípios a partir de emendas parlamentares, a pedido de deputados federais. O MDR alega que decidiu suspender o edital sob suspeita, o de número 22/2020, e renegociar os contratos para evitar fraudes.
No último dia 31 de agosto, a Controladoria-Geral da União (CGU) divulgou um relatório em que aponta diversos indícios de irregularidades nos contratos, que chegariam a R$ 2,89 bilhões. O negócio previa a aquisição de maquinários agrícolas para todos os estados brasileiros. No valor total dos contratos, as investigações apontam sobrepreço de R$ 142 milhões.
Com destino ao Ceará
No caso do Ceará, a CGU identificou dois lotes com “elevado risco de sobrepreço” na licitação para registro de preços. Em um grupo, o Ministério previa a aquisição de 81 pás carregadeiras a um custo de R$ 342,3 mil por unidade.
Na busca de preço feita pela CGU, as máquinas foram encontradas por R$ 299,4 mil, uma diferença de quase R$ 43 mil por unidade. Ao todo, o lote a ser enviado para o Ceará teria um sobrepreço de R$ 3,4 milhões.
Já em outro grupo de maquinários, o Governo Federal iria adquirir 81 motoniveladoras, com cada uma custando R$ 770,6 mil, valor bem superior ao preço real de R$ R$ 656,8, mil, segundo avaliação da CGU. Neste lote, o sobrepreço seria de R$ 113,7 mil por equipamento, chegando a um montante final de R$ 9,2 milhões.
“Toma lá, dá cá”
A auditoria da CGU ocorreu na esteira de uma série de reportagens publicadas no jornal O Estado de S. Paulo revelando que o governo de Jair Bolsonaro criou um mecanismo de “toma lá, dá cá”, usando emendas parlamentares, para aumentar sua base de apoio no Congresso.
A matéria aponta que, no final do ano de 2020, foram destinados R$ 3 bilhões em emendas do relator-geral (RP9) para aquisição, dentre outros, de “tratores e equipamentos agrícolas por preços até 259% acima dos valores de referência fixados pelo governo”. Desses, R$ 81 milhões foram destinados à Companhia de Desenvolvimento dos Vales do São Francisco e do Parnaíba (Codevasf).
A análise da CGU foi feita a pedido do próprio ministro do Desenvolvimento Regional, Rogério Marinho. Ele defendia que os contratos firmados estavam dentro da normalidade. Em audiência na Câmara dos Deputados, em junho deste ano, ele chegou a questionar sobre erros ou má fé na apuração jornalística.
“Como se pode falar de superfaturamento em uma compra que não foi feita? Ou houve açodamento por parte do jornal e do jornalista, na pressa de se pregar uma narrativa, ou houve má-fé deliberada”, disse.
Convênios sob suspeitas
No entanto, o relatório da Controladoria, ao analisar uma amostra de 188 convênios, todos celebrados com verbas de emenda do relator, constatou que em 61% (115) desses contratos havia risco de sobrepreço “alto ou extremo”.
Dessa amostra, os analistas identificaram alto risco de sobrepreço em convênios que teriam como finalidade enviar maquinário para as cidades de Iguatu, no Centro-Sul cearense, e Tauá, no Sertão dos Inhamuns.
Para Iguatu, o MDR iria adquirir um caminhão basculante para ser usado como usina móvel de asfalto. O valor previsto inicialmente para o Governo Federal era de R$ 460 mil. Porém, a CGU apontou que o valor real do equipamento é de R$ 384,4 mil.
Em Tauá, a Prefeitura receberia outro caminhão, com tamanho maior, mas que seria usado para a mesma finalidade. O valor inicial do contrato era de R$ 470 mil, enquanto a Controladoria avaliou em R$ 400,2 mil.
Hipóteses
O relatório aponta duas hipóteses para os preços elevados. “Pode-se indicar a pesquisa de preços realizada pelo MDR predominantemente fundada em valores cotados junto a fornecedores que acabam por não refletir efetivamente os melhores preços do mercado”, cogita a CGU.
O órgão indica ainda que, como houve uma busca por um número grande de equipamentos por lote, restringiu-se a competição “às fábricas ou grandes representantes, visto que apenas estes poderiam se comprometer a realizar essas entregas”.
Contratos suspensos
À CGU, o Ministério do Desenvolvimento Regional informou que, ainda no início das investigações, com indicativos preliminares, a Pasta tomou ações para dispersar os riscos identificados pela equipe de auditoria.
Inicialmente, a Pasta diz que determinou a suspensão de todos os convênios objetos de apontamentos.
"Importante destacar que, nos convênios, os procedimentos de formação de preço de referência são realizados pelos entes conveniados (prefeituras), sem participação do ministério nessa fase. O MDR está em contato com os municípios, demandando ajustes nos processos e adequações às recomendações da Controladoria Geral da União, de maneira que os riscos de sobrepreço sejam minimizados", acrescenta.
Sobre o edital nº 22/2020, onde consta a aquisição do maquinário, o MDR diz ter entrado em contato com as empresas vencedoras do certame para conhecimento dos achados da CGU e renegociação de valores.
O Ministério aponta ainda que formalizou acordos para a redução dos valores previstos em 14 lotes apontados pela CGU. “Quanto aos demais cinco lotes com a indicação de sobrepreço, como não houve concordância dos fornecedores com a repactuação dos preços, os mesmos foram cancelados após declaração de inviabilidade pelo gestor”, informa o Ministério.
"Apenas um processo de compras havia sido realizado antes da renegociação dos valores, resultando em um pagamento de R$ 3 milhões acima do preços apontados como adequados pela CGU, o que representa 0,1% do valor global da contratação. O MDR fez um acordo com os fornecedores para que esses valores sejam devolvidos, sanando os riscos de prejuízo", acrescenta.
O Ministério informa que elaborou um banco de dados com valores comparativos entre os componentes, suspendeu cautelarmente 115 convênios apontados com riscos alto e extremo, além de ter oficiado os municípios sobre os casos.
Em nota, o MDR reafirma ao Diário do Nordeste as ações preliminares adotadas e acrescenta que instaurou, no âmbito da sua Corregedoria, uma investigação para apurar a existência de elementos que possam motivar a instalação de processo administrativo disciplinar ou de responsabilização.“Este Ministério reitera que tomou todas as medidas preventivas e corretivas de maneira que não foi gerado qualquer dano ao erário”, informa.
Tauá
A Prefeitura Municipal de Tauá, citada no relatório da CGU, informa que, apesar de ter celebrado o convênio com o MDR, a aquisição de usina móvel de asfalto com implementos ainda não ocorreu.
"A instauração de Auditoria da CGU junto ao MDR em nada afeta a Prefeitura Municipal de Tauá, tendo em vista que ainda não foi sequer aprovado o Plano de Trabalho do Convênio, encontrando-se em fase instrutória para apreciação e aprovação da Secretaria Nacional de Mobilidade e Desenvolvimento Regional e Urbano", ressalta o Município.
Em nota, a Prefeitura destaca que a chefe do Executivo municipal, a prefeita Patrícia Aguiar (PSD), determinou aos setores administrativos municipais que fosse realizada a instrução do plano de trabalho observando todas as normas legais estabelecidas pelo Governo Federal, especialmente no que se refere às regras sobre pesquisa de preços.
"A Prefeitura Municipal não licitou, não contratou e nem adquiriu nenhum dos equipamentos da usina de asfalto, até por que o convênio sequer foi finalizado e autorizadas as aquisições, portanto, não há de se falar em superfaturamente", finaliza a Prefeitura em nota.
Iguatu
A Prefeitura de Iguatu confirmou que o município firmou convênio com o MDR para a aquisição de uma usina móvel de asfalto. "Para o processo licitatório ter início, é de domínio público que antecedentemente exista uma fase que tem por objetivo indicar os termos de referências para pesquisa de preços médios praticados no mercado, isso para cada item a ser adquirido".
No caso de Iguatu, o processo licitatório ainda não foi concluído, informou o Município, alegando que dois itens foram considerados fracassados pela Comissão de Licitação, “exatamente porque os preços oferecidos foram considerados abaixo do valor de mercado pelos concorrentes e, por essa razão, não teve proposta para a compra de um mini-rolo e um rolo compactador”.
“Portanto, fica evidenciado que não existe nenhum tipo de superfaturamento, até porque os itens que foram efetivamente licitados estão abaixo do preço médio do valor de referência”, aponta a gestão.
“O MDR ainda não repassou o valor do convênio e, portanto, não há qualquer pagamento ou prejuízo ao erário público levando-se em consideração que o processo de aquisição ainda está em andamento”, conclui a nota.
Emendas do relator
As suspeitas envolvendo a aquisição de tratores têm como origem a destinação de emendas feitas a pedido de deputados federais e senadores. Além das emendas individuais, das de bancada e das de comissões, os parlamentares têm direito ainda às emendas do relator.
Emendas "são propostas por meio das quais os parlamentares podem opinar ou influir na alocação de recursos públicos em função de compromissos políticos que assumiram durante seus mandatos, tanto junto aos Estados e municípios, quanto a instituições". A definição é do próprio Senado Federal.
No caso dos três primeiros tipos de emenda, elas têm valores fixos e destinação obrigatória, seja a pedido de deputados e senadores da base ou da oposição.
O centro da polêmica está nas emendas do relator, mecanismo usado para que o parlamentar escolhido para produzir o relatório final do Orçamento possa fazer ajustes na destinação de recursos.
Diferentemente dos outros tipos, essa categoria de emenda é menos transparente, já que o Congresso pode apontar áreas genéricas para aplicação dos recursos, mas a escolha final de onde serão empregados cabe ao Executivo. Na prática, isso abre margem para o Governo beneficiar parlamentares aliados, deixando que eles decidam onde empregar algumas fatias do Orçamento.
Desde de 2020, esse tipo de recurso passou a definir o destino cada vez maior do Orçamento. À época, o relator da proposta era o deputado federal do Ceará Domingos Neto (PSD), que teve autonomia de remanejar esses recursos e negociar com outros parlamentares onde seriam aplicados.
Emendas para os cearenses
À época, o caso gerou polêmica. Conforme mostrou o Diário do Nordeste em junho deste ano, o parlamentar indicou R$ 60 milhões à Codevasf para a compra dos equipamentos. O destino de parte desses recursos foi a aquisição e distribuição de maquinários de obras pesadas para 22 das 27 prefeituras cearenses eleitas pelo PSD no Ceará.
Entre as gestões beneficiadas estava justamente a de Tauá, berço político da família do parlamentar, cuja prefeitura é comandada por sua mãe, Patrícia Aguiar (PSD). O município aparece novamente no relatório do TCU divulgado neste ano.
Ao Diário do Nordeste, à época da reportagem, Domingos Neto negou qualquer conduta ilegal. “É missão do parlamentar brigar para conquistar recursos para seu estado e seus municípios, e fiquei muito feliz em poder ajudar ao nosso Estado”, disse. “Esses equipamentos são fundamentais para que os municípios possam ter as condições de executar obras como estradas e obras hídricas”, pontuou.
Já no Orçamento de 2021, as emendas de relator voltaram a causar discussões e levantar suspeitas de distorções. Relator do documento, o senador Márcio Bittar (MBD) propôs alocar R$ 26 bilhões nesse mecanismo. Diante das críticas, parte do montante (cerca de R$ 10 bilhões) foi reempregado em despesas obrigatórias do Executivo.
No fim de maio deste ano, o Ministério da Economia editou uma portaria modificando a liberação dos recursos do orçamento para esse tipo de mecanismo. Na prática, a liberação dá mais poder ao Congresso sobre o orçamento e, em tese, melhora o apoio ao governo nas casas. A mudança fez com que críticos da medida dessem ao mecanismo o nome de "orçamento paralelo".
Investigação
No último dia 7 de outubro, o ministro Wagner Rosário, da CGU, confirmou ao jornal Estado de S. Paulo que a sua pasta e a Polícia Federal investigam um esquema de venda de emendas parlamentares. Em audiência na Câmara, ele também disse “não ter dúvida” de que há corrupção na compra de tratores pelo governo via orçamento secreto.
Conforme parlamentares ouvidos sob condição de anonimato pelo Diário do Nordeste e pelo jornal paulista, os valores superfaturados dos equipamentos adquiridos são usados para “pagar” os parlamentares pela destinação do recurso. As cotas variariam de 15% a 20% sobre o valor da emenda destinada às prefeituras.
“Sobre vendas de emendas, estamos investigando vários casos porque já fazemos esse trabalho em convênios em geral. Porque não é só trator, tem várias outras coisas acontecendo fruto de convênios no Brasil em diversos outros órgãos e estamos com trabalho bastante forte nisso, em parceria com a PF, e todos nós vamos ficar sabendo no dia da deflagração de operação e também no desencadeamento dos trabalhos”, disse o ministro Wagner Rosário aos deputados.