A divulgação dos dados do Censo Demográfico de 2022 revelou inconsistências na distribuição das 513 cadeiras da Câmara dos Deputados por estado em relação ao determinado pela Constituição Federal. Defasada há quase 30 anos, a divisão dos assentos da Câmara por unidade federativa, de forma proporcional à população do País nos territórios, não é atualizada desde 1994, conforme levantamento do Diário do Nordeste, feito com base no cruzamento de dados censitários com normas da Constituição, de lei complementar e de resoluções do Tribunal Superior Eleitoral (TSE).
A última atualização na organização das vagas por unidade da federação ocorreu em 1994, quando o TSE atendeu ao que determinava a Lei Complementar 78/1993 e contemplou São Paulo com a quantidade máxima (70) de assentos na Casa permitida por lei. Antes, o estado mais populoso do Brasil tinha 60 vagas.
A cota máxima (70) e mínima (8) de cadeiras por unidade da federação é prevista na Constituição Federal de 1988 e na lei complementar 78/1993 — para que estados com maior número de habitantes não dominem todas as vagas enquanto os com menor número minguam em ocupação de espaço, já que os cargos no Congresso Nacional se refletem, também, em recursos públicos para os territórios e no tamanho das Assembleias Legislativas estaduais. É o que apontam especialistas ouvidos pela reportagem.
A Constituição também prevê que a representação de estados e do Distrito Federal (DF) na Câmara deve ser proporcional à população do território, observando os limites máximos e mínimos. A medida, todavia, não tem sido respeitada.
O especialista em Direito Constitucional e Eleitoral e consultor legislativo do Senado, Arlindo Fernandes, explica que inconsistência ocorre devido a um imbróglio político e jurídico, já que estados poderosos poderiam perder vagas caso a proporcionalidade fosse aplicada.
"A Constituição de 1988 veio com essa regra geral e estabeleceu que o Congresso deveria fazer a distribuição por meio de lei complementar. A lei complementar estabeleceu o número de vagas (513), que é o número que está aí até hoje. De lá para cá, são 30 anos e não foi feita uma nova lei (com o cálculo que deve ser seguido). (...) Por que o Pará que teve um crescimento significativo na população (nos últimos anos) não ganhou? Porque houve uma disputa política e jurídica por essas vagas"
Uma redistribuição chegou a ser feita pelo TSE em 2013, com um cálculo já utilizado pelo Tribunal em 1994 , quando fez a última atualização na divisão dos assentos para contemplar São Paulo com a cota máxima permitida pela Constituição, conforme explica Arlindo Fernandes. Todavia, a resolução publica pelo TSE (23.389/2013) foi alvo de embates no Congresso Nacional, que acabou revogando a medida por meio de decreto legislativo.
Questionamentos jurídicos
Alguns estados que perdiam vagas e não aceitavam a nova configuração proposta pelo TSE, como Paraíba e Espírito Santo, também questionaram a resolução 23.389/2013 na Justiça. Os entes, inclusive, chegaram a entrar com ações direta de inconstitucionalidade (ADI) no Supremo Tribunal Federal (STF), em 2014, que retirou de vez a competência do TSE para calcular e distribuir as vagas da Câmara dos Deputados — ainda que a configuração que permaneceu (e está em vigor até hoje) tenha sido definida pelo TSE na resolução 14.235/1994.
O trecho da lei 78/1993 que delegava à Justiça Eleitoral a responsabilidade pelo cálculo e divisão das vagas também foi considerado inconstitucional pelo Supremo, que determinou que cabia ao Congresso Nacional editar uma lei com os critérios da divisão. Depois do imbróglio no STF, o TSE não tratou mais sobre o assunto.
Em paralelo, o Congresso não aprovou nenhuma nova lei que defina como deve ser feito o cálculo da distribuição proporcional dos assentos na Câmara dos Deputados de acordo com a população dos entes. Assim, permanece em vigor a lei 78/1993, mas sem validade no ponto que tratava sobre o cálculo, porque delegava ao TSE.
O analista político André Santos, do Departamento Intersindical de Assessoria Parlamentar (Diap) do Congresso Nacional, analisa que a divulgação do Censo de 2022 pode provocar uma nova discussão sobre a repartição das vagas no Parlamento Federal de olho na eleição de 2026. Com isso, novos questionamentos jurídicos e políticos podem ser levantados.
“Pela Constituição e pela lei complementar, (a divisão das vagas) seria pela proporcionalidade da população. Mas esse regramento, hoje, não está vigente porque não houve uma recontagem para distribuição das vagas por estado desde 1994, porque tem estado que vai perder e vai chiar. Então, não há um acordo sobre isso. Imagina o presidente da Câmara hoje fazer a recontagem e perder uma dessas vagas? Isso é mais uma decisão política do que necessariamente seguir a previsão legal. Mas pode haver questionamentos dos estados que ganhariam”
Uns com menos, outros com mais
Diante desse cenário, a representatividade de alguns estados tem sido prejudicada, enquanto outros são beneficiados. É o caso do Pará, por exemplo, que tem o mesmo número de assentos (17) na Câmara desde a eleição de 1986 — primeiro pleito pós-ditadura e responsável por eleger os parlamentares para a Assembleia Nacional Constituinte. Naquele ano, inclusive, a Câmara dos Deputados ainda tinha 487 assentos. Hoje, são 513.
A população do estado cresceu, mas o Pará não conseguiu atualizar o número de vagas. O estado deveria ter ganhado quatro vagas na eleição de 2014, e permanecido com elas até então, assim como Ceará e Minas Gerais deveriam ter ganhado duas vagas cada. Santa Catarina e Amazonas também deveriam ter ganhado uma vaga cada, conforme apontou recontagem do TSE feita em 2013.
Na contramão dos que conquistariam novos assentos, estão estados do Nordeste e Sudeste. Paraíba e Piauí perderiam duas vagas cada, enquanto Alagoas, Espírito Santo, Paraná, Pernambuco, Rio Grande do Sul e Rio de Janeiro perderiam uma cadeira cada.
O cálculo foi feito pelo TSE em 2013 com base no Quociente Populacional Nacional (QPN), Quociente Populacional Estadual (QPE) e "Maior Média" — este último aplicado apenas para as vagas das "sobras" (que não foram preenchidas pelo QPE). O Tribunal chegou a publicar, em abril de 2013, uma resolução (23.389/2013) com a redistribuição das vagas na Câmara dos Deputados para que a reconfiguração fosse aplicada na eleição geral de 2014.
A medida, todavia, foi revogada por decreto do legislativo do Congresso em dezembro de 2013 e, posteriormente, pelo STF.
QPE e QPN
Apesar do Supremo ter sustado a distribuição feita pelo TSE em 2013, o modelo de cálculo já havia sido definido pela Corte Eleitoral ainda na década de 1990, conforme explica Arlindo Fernandes. A medida, inclusive, foi utilizada pelo TSE em 1994 para reajustar as cadeiras que o estado de São Paulo tinha direito, já que a cota máxima estabelecida pela Constituição de 1988 passou para 70.
A metodologia de cálculo funcionava da seguinte forma: primeiro, calculava-se o QPN, que é o resultado da divisão da população total do País, baseado nos dados do último Censo, pelo número de cadeiras disponíveis na Câmara dos Deputados (513). De 2014 a 2022, o quociente populacional nacional seria de 371.843,66, com base no Censo de 2010.
Depois, era determinado o QPE, dividindo a população da unidade federada pelo QPN. O resultado determinava o número de cadeiras que o estado tinha direito, considerando apenas os números inteiros. Todavia, o QPE não preenche, necessariamente, a totalidade das cadeiras disponíveis na Câmara, já que a Constituição estabelece uma quantidade mínima (8) e máxima (70) de assentos por estado. No cálculo feito pelo TSE em 2013, para a eleição de 2014, o QPE preencheu 496 das 513 vagas.
As "sobras" (17) das cadeiras foram distribuídas com base em um cálculo baseado no quociente partidário, excluindo os estados que já tinham sido beneficiados com a cota mínima e máxima. No caso, fez-se uma conta de 'Maior Média' (MM), dividindo a população do estado pelo número de vagas inicialmente conquistadas por ele mais 1. Assim, a UF que obtivesse a maior média ganhava a primeira vaga que sobrou.
Em seguida, o cálculo era refeito, inclusive considerando o estado que ganhou uma vaga das sobras, como explica o presidente da Comissão de Direito Eleitoral da Ordem dos Advogados do Brasil secção Ceará (OAB-CE), Fernandes Neto.
"Nós vamos ter as sobras das vagas que restam a ser disputadas por estados. Você exclui todos os estados que têm esse mínimo e máximo e vai fazer o cálculo da maior média, que corresponde à população do estado dividida pelo número de cadeiras inicial que o estado conquistou mais 1. E aí sucessivamente. Você faz a conta e vê que o Pará, em tese, tem a maior média. Aí você começa a contar tudo de novo, acrescentando o Pará com uma vaga a mais. O último cálculo feito foi em 2013, provocado pelo Amazonas. O Ceará ganharia (vagas), o Pará (também), com base no último Censo Oficial. Eu não poderia fazer isso com a estimativa de população, porque não é o retrato real”
O correto agora, segundo Fernandes Neto, seria ter um “novo cálculo das vagas para deputados federais e, consequentemente, para estadual - porque se baseia nas vagas da Câmara -, para a eleição de 2026”.
Todavia, como a resolução do TSE foi revogada, o cálculo de redistribuição das vagas proposto pela Justiça Eleitoral não está mais em vigor.
O imbróglio
Para os especialistas, a revogação da competência do TSE pelo STF, em 2014, para calcular a distribuição das cadeiras da Câmara dos Deputados pelos estados traz um imbróglio jurídico, porque a configuração que está em vigor atualmente é de 1994, já determinada pelo próprio Tribunal Eleitoral seguindo a Constituição e a Lei Complementar.
“A resolução do TSE comete um erro porque foi administrativa, deveria ter sido uma resolução judicial. Quando o assunto chegou no Supremo em 2014, houve ministros que disseram que, apesar de não ser a melhor ferramenta, ela corrige o problema legal. No acórdão, havia maioria para deixar que aquela resolução continuasse valendo até que viesse uma lei que corrigisse isso. Faltou um voto no STF para os ministros formarem entendimento de que o que estava sendo alterado era pior do que a realidade. De lá para cá, já teve o Censo de 1991, 2000, 2010 e 2022. Quase 30 anos e o Congresso ainda não mudou a lei”
Em 1994, inclusive, quando o TSE atualizou a distribuição das cadeiras para contemplar São Paulo com a cota máxima (70), a proporcionalidade dos demais estados não foi corrigida devido a um Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT). O parágrafo segundoº, do artigo 4º do ADCT, assegura a “irredutibilidade da atual representação dos Estados e do Distrito Federal na Câmara dos Deputados”
Por isso, todos os estados e o Distrito Federal permaneceram com o mesmo número de assentos que tinham antes desde a eleição de 1990, ainda que não refletissem a proporção de representatividade que deveriam.
Fernandes Neto explica que os atos constitucionais transitórios foram estabelecidos na Constituição de 1988 para vigorar de forma temporária, enquanto novas regras sobre o assunto não fossem elaboradas. Todavia, o Congresso aprovou a lei complementar 78/1993 estipulando as regras e, mesmo assim, a configuração da Câmara estabelecida por força do ato transitório continua em vigor — já que a resolução de 1994 do TSE respeitou a medida.
“Com base nos atos das disposições constitucionais transitórias, que é uma discussão temporária feita até discutir novos critérios, determina-se a irredutibilidade da representação nos estados. Só que, ante a inconstitucionalidade declarada pelo Supremo da competência da Justiça Eleitoral para determinar esse número, cria-se um vácuo jurídico, uma vez que o Congresso Nacional não estabeleceu essa fórmula matemática para determinar a divisão e o cálculo da representação dos estados na Câmara. Agora, vai ocorrer uma confusão jurídica, uma vez que pelos dados do Censo de 2022 se pode aferir que houve modificação na população dos estados, gerando, consequentemente, a modificação nos parâmetros distribuídos — se analisarmos o que foi fixado pelo TSE na resolução 14.235, de 1994”, avalia Fernandes Neto.
O impacto nas Assembleias
A falta de redistribuição das cadeiras da Câmara dos Deputados impacta, também, nas Assembleias Legislativas estaduais. O artigo 27º da Constituição Federal estabelece que o número de deputados estaduais será o triplo da representação dos estados na Câmara e, ao atingir a quantidade de 36, será acrescido de “tanto quantos forem os deputados federais acima de doze”.
O cálculo é mais simples do que a divisão por estado na Câmara, mas depende da quantidade de representantes no Parlamento Federal. Por isso, se o número do Ceará tivesse sido atualizado a partir da eleição de 2014 com o Censo Demográfico de 2010, o Estado teria atualmente 48 deputados na Assembleia Legislativa (Alece). Como não houve, permanece com 46.
Evolução das cadeiras
Nem sempre o número de vagas na Câmara dos Deputados foi 513. Até 1986, último pleito antes da publicação da Constituição Federal, o número de assentos na Câmara era 487.
Com a Carta Magna, a quantidade de cadeiras na Câmara dos Deputados aumentou, pois novos estados foram criados. Em 1988, houve apenas uma eleição para deputado federal no Tocantins, devido a criação do estado pela Constituição. O mínimo (8) de parlamentares para a Casa Federal foi atingido, o que elevou o número de assentos para 495 naquele ano.
Os territórios federais que já tinham representação política na Câmara, como Amapá e Roraima, passaram de quatro para oito deputados cada a partir da eleição de 1990. As duas unidades da federação também foram transformadas em estados pela Constituição e, por isso, passaram a ter o mínimo de assentos (8) estipulados pela Carta Magna 1988. Antes, o Amapá e Roraima tinham quatro parlamentares cada.
Com os novos estados instituídos, em 1990, havia 503 assentos na Câmara Federal. Todavia, a Constituição previa que uma lei complementar deveria ser aprovada pelo Congresso Nacional para estabelecer o número total de deputados, bem como a representação por estado e pelo Distrito Federal proporcional à população do País, desde que os limites máximo (70) e mínimo (8) fossem obedecidos.
A lei veio em 1993, fixando o número de representantes em 513 e delegando ao TSE a responsabilidade pelo cálculo da representação proporcional à população de cada ente, com base em dados demográficos atualizados até um ano antes da eleição fornecidos pelo IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), ou seja, pelos Censos.
Com isso, em 1994, o TSE publicou a resolução 14.235/1994 estabelecendo o número de membros para a Câmara dos Deputados e para as Assembleia Legislativas por estado, para eleição geral daquele ano. Na medida, a Corte apenas acrescentou as 10 vagas que São Paulo tinha direito, já que, proporcionalmente, o estado deveria ter mais de 100 deputados devido ao tamanho da sua população. Como a Constituição estabelece um teto de vagas, o estado ficou com 70 assentos na Câmara. Antes, SP tinha 60.
Com o acréscimo das vagas de São Paulo, o número total de cadeiras na Câmara dos Deputados chegou a 513. Desde 1994, SP passou a contar também com mais 10 cadeiras na Assembleia Legislativa do Estado (Alesp). Na Alesp, há 94 assentos de deputados estaduais.