Um levantamento com todas as 184 prefeituras do Ceará que buscava saber quantas obras haviam sido paralisadas nos municípios devido à pandemia da Covid-19 resultou na descoberta de um vácuo de acesso à informação em 154 das cidades do Estado. Apenas 20 prefeituras, cerca de 10,9%, responderam a demanda dentro do prazo máximo de 30 dias, determinado pela Lei de Acesso à Informação (LAI).
Das 164 restantes, 10 responderam após o prazo, com atrasos que alcançaram até 117 dias desde a solicitação da demanda. Em 154 cidades, cerca de 83,7% de todas prefeituras cearenses, não houve retorno aos questionamentos relacionados à paralisação de obras. Em nove delas, não foi localizada sequer a plataforma do Sistema Eletrônico de Informações ao Cidadão, o e-SIC, um sistema virtual que centraliza todos os pedidos de informação amparados pela LAI, dirigidos aos órgãos do Poder Executivo.
“Os números mostram que a maioria dos cearenses é impedida de exercer o direito básico de pedir e obter informações sobre sua própria cidade. E assim outros direitos mais concretos, como saúde, educação e segurança, também ficam prejudicados. Se uma pessoa não consegue resposta sobre uma obra em uma escola local, por exemplo, como poderá saber se o dinheiro gasto nessa obra atende às necessidades de sua comunidade?”, pontua a jornalista, gerente de projetos da ONG Transparência Brasil e secretária executiva do Fórum de Direito de Acesso a Informações Públicas, Marina Iemini Atoji.
Sancionada em 2011, a Lei de Acesso à Informação passou a vigorar no Brasil em maio de 2012. O texto aperfeiçoou o direito constitucional de acesso aos dados públicos e a Lei da Transparência, sancionada dois anos antes, que determinou a disponibilização dos gastos públicos em tempo real "em meios eletrônicos de acesso público".
Com a LAI, o cidadão passou a ter ferramentas e procedimentos mais claros para provocar os entes públicos, solicitando uma informação que não esteja nos portais de transparência.
Pandemia
Após oito anos de vigência, a lei foi colocada sob tensão no contexto de calamidade pública da pandemia da Covid-19. Em 23 de março deste ano, o Governo Federal publicou a Medida Provisória (MP) nº 928, que suspendia os prazos de resposta a pedidos de informação nos órgãos ou entidades cujos servidores estivessem em trabalho remoto - priorizando o atendimento das solicitações relacionadas às medidas de enfrentamento da pandemia. Também desrespeitava o direito de recursos aos pedidos negados com a justificativa da pandemia.
Entidades da sociedade civil reagiram à medida, alegando afronta à LAI. Apenas três dias depois, o ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Alexandre de Moraes concedeu uma liminar que suspendeu esse trecho da MP - decisão confirmada pelo plenário da Corte em 30 de abril.
A demanda do Diário do Nordeste aos municípios cearenses foi iniciada em 19 de maio, já sob efeitos da suspensão do trecho da liminar do Governo Federal. Ainda assim, houve casos como o da Prefeitura de Barreira, que pediu que a demanda fosse feita após a pandemia ou de forma presencial - mesmo em meio ao decreto de isolamento social determinado pelo Governo do Estado.
"Diante do cenário que estamos vivendo atualmente por conta da PANDEMIA (sic), estamos com o nosso quadro de funcionários reduzido. No entanto, quando passar o isolamento social e tudo voltar ao normal, sugerimos que entre em contato novamente para que possamos lhe ajudar. Ou se preferir poderá se dirigir pessoalmente no Paço Municipal para obter maiores esclarecimentos acerca do assunto", diz a resposta encaminhada pela plataforma e-SIC, doze dias após a demanda. Mesmo recorrendo da reposta, não houve nova manifestação.
O descumprimento da Lei não é caso apenas de cidades pequenas. A Prefeitura de Fortaleza também alegou as regras da MP 928 para afirmar que estavam suspensos os prazos para os pedidos de informação. Diante de recurso contra a resposta, foi enviada uma negativa ao artifício, mas não houve resposta sobre a paralisação das obras.
Resposta incompleta
Em muitos casos, é dada uma resposta genérica que faz com que a plataforma contabilize a demanda como "respondida", mas, na prática, o que o solicitante recebe é uma afirmação, por exemplo, de que "a solicitação foi encaminhada para a secretaria responsável”. Mesmo que seja possível o recurso, não há nenhum novo feedback. Isso aconteceu em prefeituras como Deputado Irapuan Pinheiro, Campos Sales, Barroquinha e Cedro.
“São exemplos de transparência pela metade. Órgãos públicos providenciam apenas aquilo que fica mais visível (o meio de fazer um pedido) e ignoram o resto da lei, prejudicando o exercício pleno do direito de acesso a informações. O recurso é uma parte importante do processo, pois pode reverter uma primeira resposta negativa ou serve como forma de reclamar pelo atraso ou falta de resposta. Se não há forma simples de fazer um recurso, não tem transparência completa”, afirma Marina Atoji.
A Prefeitura de Bela Cruz, que respondeu a demanda no mesmo dia, em 20 de maio, limitou-se a perguntar qual "o real objetivo da solicitação" e disse que não era possível "fazer esse levantamento em virtude da suspensão dos serviços" e manutenção apenas de "serviços essenciais". Não foi possível abrir recurso da demanda.
Conforme a legislação, a LAI dispensa a apresentação de motivação pelo interessado numa informação pública e garante a gratuidade do procedimento, salvo custos de reprodução de documentos.
"A lei vai muito além do que apenas exigir um repositório de informações. Ela exige que você ajude o cidadão a conhecer a administração. A lei diz que você deve poder baixar dados, tabelas, ter instrumentos de T.I. (Tecnologia da Informação) e até tutoriais ensinando o cidadão. O ideal é que nosso camponês do interior possa pedir ajuda ao filho para ver quanto custou a pintura da escola. O acesso tem que ser fácil, e é justamente o contrário do que nós vemos", afirma o promotor de Justiça e coordenador do Centro de Apoio Operacional da Defesa do Patrimônio Público e da Moralidade Administrativa do Ministério Público do Estado, Élder Ximenes.
O ente público que não cumprir as leis de transparência pode sofrer retaliações de ordem financeira, como a impossibilidade de receber recursos federais para investimentos em políticas públicas locais e autorização para fazer empréstimos. A fiscalização cabe ao cidadão e aos órgãos de controle, como o Ministério Público e os Tribunais de Contas.
Às vésperas de eleições municipais e o início de novas gestões tanto no Poder Executivo municipal como no Legislativo, a expectativa do MPCE e da Associação dos Municípios do Estado do Ceará (Aprece) é reforçar a capacitação das prefeituras para o cumprimento da LAI.
"A gente sabe que a estruturação dos municípios está um pouco lenta. A Aprece tem feito capacitações, fechamos parceria com a CGU (Controladoria-Geral da União) em 2018 e 2019, fizemos as capacitações com relação à Lei de Acesso à Informação e à Lei da Transparência, a CGU disponibilizou ferramentas, mas a gente sabe que há uma precariedade nesse sentido. Com a chegada de novos gestores, com o que vamos empreender em relação a prefeitos novos e reeleitos, essa será uma nova pauta. Sabemos que a lei tem de ser cumprida, apesar de as dificuldades serem muitas", pontua a coordenadora da Escola de Gestão Pública da Aprece, Helderiza Queiroz.