O que Darwin tem a ver com o cangaço e o Nordeste? Vem comigo

— Xô, Cabeleira safado!

O biólogo e naturalista britânico Charles Darwin (1809 – 1882) não entendia bulhufas ao receber esse insulto. Na época, estava apenas investigando a evolução da espécie nos quintais e várzeas dos rios Capibaribe e Beberibe, em Pernambuco, ainda no século XIX.

Mal sabia que sua vida estava em risco. Por causa dos cabelos e barbas desgrenhados, moradores do Recife e de Olinda confundiam o cientista com o lendário José Gomes, um dos precursores do cangaço no Nordeste — o mesmo personagem retratado pelo escritor cearense Franklin Távora no livro “O Cabeleira”, primeiro romance ao tratar desse tema, ainda em 1876, vinte e dois anos antes do nascimento de Lampião.

Em seu diário, Darwin relembra ter sido destratado em Olinda: “Devo comemorar o fato de esta ser a primeira vez em que fui maltratado nesses quatro anos e meio de viagem. Recusaram me receber em duas casas. Por fim, consegui com dificuldade permissão para passar pelo quintal de uma terceira, com o objetivo de chegar a um barranco onde poderia ver melhor os arredores.”

Embora tenha relacionado essa dificuldade ao caráter dos brasileiros, pelos quais não tinha a menor simpatia, no folclore do Recife permanece até hoje a versão de que os moradores viam o naturalista como a própria reencarnação de Cabeleira, condenado à forca e executado na capital pernambucana em 1786 — em um assalto a um armazém, em 1772, o bandoleiro matou dois homens e fez a cidade refém dos seus atos violentos.

No livro “Pessoas, Coisas e Animais”, publicado em 1979, o sociólogo e escritor Gilberto Freyre conta que, quando era criança nos anos 1900, Cabeleira ainda tinha a fama de bicho-papão. “Cabeleira morrera sim, eu sabia que morrera, enforcado. Enforcado e dizendo que o pai é que lhe ensinara a matar. Mas isso de ter morrido não contava para os monstros [...] um monstro incrivelmente cabeludo, de unhas enormes e amarelo que nem lobisomem.”

Além de reclamar da hospitalidade em Olinda, Darwin deixou vários registros de sua aversão ao Brasil, alguns deles justificados. O britânico escandalizou-se, por exemplo, com a escravidão. “Ouvi histórias tão grotescas que, se as tivesse lido na Inglaterra, teria considerado um exagero.”

Para o biólogo viajante, a escravidão era o motivo pelo qual os brasileiros tinham poucas qualidades: “São ignorantes, covardes e indolentes, hospitaleiros apenas quando os interessa e vingativos, embora acomodados. São apegados aos seus costumes – afinal ‘por que não podemos fazer como faziam os nossos avós?’ Sua aparência demonstra a degradação de caráter. Nas mulheres, acostumadas com o convívio com os escravos, a voz tem um tom pesado. Falam sempre mandando".

Ao deixar Recife, Charles Darwin escreveu, sem piedade: “O Brasil é terra de escravidão e aviltes morais. Espero nunca mais visitar este país de escravos.” Não retornou, mas levou consigo uma outra maldição brasileira. Estudiosos acreditam que ele tenha morrido vítima do Mal de Chagas, doença tropical transmitida pelo inseto barbeiro, em 1882.

(Esta coluna é dedicada ao poeta e jornalista Rodrigo Garcia, o primeiro amigo a tratar do assunto, ainda nas páginas do meu site “O Carapuceiro”).