Todo dia é um 7x1 diferente. Seja na política, seja na crônica de costumes. Assim se passaram dez anos, confira comigo no replay.
“Chegaram de novo, chegaram de novo!”, dizia um desesperado Galvão Bueno, narrador da TV Globo, ao terceiro gol dos alemães. “E lá vem mais, e lá vem mais, virou passeio!”. O que era trágico ganhava ares de cômico, na voz do locutor, diante do inacreditável 4x0 no placar.
Ao quinto gol, com apenas 28 minutos do primeiro tempo, o que falar para a torcida verde e amarela? “Lá vêm eles de novo, olha só que absurdo!”, relatava Galvão.
O dia 8 de julho de 2014 deixou marcada para sempre a Seleção Brasileira de Futebol. Naquela tarde, o time nacional foi goleado, em casa, por incríveis 7 a 1 diante da Alemanha. Foi a maior e mais vergonhosa goleada sofrida pela “Pátria em chuteiras” — como definia o cronista Nelson Rodrigues — na história.
O vexame pelas semifinais da Copa 2014, no estádio Mineirão, em Belo Horizonte, devolveu ao país o Complexo de Vira-Latas que o nosso futebol havia abandonado desde a conquista do primeiro mundial, em 1958.
Para quem achava que nenhuma humilhação superaria o “Maracanazzo” de 1950, quando o Brasil do “já ganhou” perdeu a finalíssima para os uruguaios (1x2), a goleada ficou como um trauma que vai demorar a ser curado. “Gol da Alemanha”. O que era apenas uma piada ou um meme das redes sociais, nos persegue até hoje, qual um zumbido grudado no cérebro.
O próprio termo “7 a 1” entrou para o vocabulário nacional. Ele é sempre utilizado para uma situação de derrota ou decepção, seja na vida pessoal ou pública. “Todo dia é um 7 a 1 diferente”, dizemos sobre as mazelas diárias do país nos telejornais. Vale para qualquer assunto ou temporada, mas nunca repetimos tanto esse lema quanto durante a pandemia do Covid-19, espantados com a política negacionista do governo do presidente Jair Bolsonaro.
“Gol da Alemanha”.
Sem explicações convincentes para o vexame, o técnico Luiz Felipe Scolari atribui o desastre a um “apagão” do time. Carlos Alberto Parreira, coordenador da CBF, recorreu à leitura da famosa carta da dona Lúcia, uma patriota que teria escrito, via e-mail, para confortar o grupo.
“Professor Felipão, acabo de ver a coletiva dada pelo senhor. Mais uma vez vi diante da câmera um homem íntegro e corajoso. Fiquei muito triste ao constatar que o ser humano muitas vezes é de uma crueldade sem limites”, escreveu a torcedora. “Tive esse sentimento ao ouvir os jornalistas lhe perguntarem sobre a dívida do senhor com a nação brasileira. E o senhor mesmo sofrendo mais do que qualquer um ali com toda humildade que lhe é peculiar, deu uma resposta muito coerente. Parabéns”.
Lida na coletiva de imprensa do dia seguinte à tragicômica goleada do Mineirão, a cartinha fez sucesso nas redes sociais. A maioria dos brasileiros desconfiou da autenticidade da mensagem e da existência da sua autora. Muita gente comparou dona Lúcia à Velhinha de Taubaté, uma personagem fictícia do cronista Luís Fernando Veríssimo — essa bondosa senhora tinha como característica a crença inabalável nas autoridades do governo.
Só dona Lúcia acreditava que o 7 a 1 fora apenas um acidente, e não um motivo para crise no futebol brasileiro. Felipão sentiu-se confortado, sobretudo com esse trecho da mensagem: “O senhor é um grande homem e um ser humano ímpar. É claro, professor, que eu, como os demais brasileiros gostaríamos de estar comemorando outro resultado, porém sei que ninguém perde por vontade própria. Meu e-mail é só para agradecer a grande felicidade que o senhor e seu grupo proporcionaram para a nossa nação. Bom trabalho nos próximos anos”.
“Gol da Alemanha”.
Até o começo da Copa América 2024, com a canarinho ainda capenga, ninguém havia confirmado a existência de dona Lúcia, a única pessoa no Brasil a compreender o maior desastre de todos os tempos na terra que se dizia o país do futebol.
*Esse texto reflete, exclusivamente, a opinião do autor.