"É um verdadeiro descaso. A destruição de um patrimônio sagrado e histórico do Cariri. Foi o que eu verifiquei", disse o estudante Lucivando Rodrigues de Oliveira, que também é policial militar e esteve no local nesse fim de semana.
O museu do Caldeirão está sem eletricidade. Já a Igreja de Santo Inácio de Loyola e a residência do casal de agricultores e zeladores só mantêm a energia por causa do apelo feito por dona Maria Lima. Ela conta que pediu até pela alma do beato ao ter a rotina quebrada pela chegada do funcionário da concessionária de energia. Ele, o eletricista, atendeu ao pedido.
O Caldeirão da Santa Cruz do Deserto fica na zona rural do Crato. É um ambiente bastante estudado. Virou exemplo de vida em comunidade.
Conforme historiadores, na segunda década do século passado, o beato José Lourenço contou com a orientação do padre Cícero para transformar aquele torrão em uma comuna rural, reunindo cerca de 2 mil agricultores.
"O José Lourenço inaugurou uma forma de convivência coletiva, que algumas pessoas chamam de primeira experiência de reforma agrária de cunho popular. Outras pessoas vão dizer que ali havia uma experiência socialista. Há várias maneiras de se interpretar a vivência daquela comundidade no Caldeirão", afirma o professor Domingos Sávio de Almeida Cordeiro, autor de "Um beato líder: narrativas memoráveis do Caldeirão".
Com a morte do Padim, a experiência comunitária teria passado a ser vista como ameaça comunista. A comunidade do Caldeirão foi extinta.
"Na invasão do Caldeirão, que aconteceu em 1936, a polícia roubou muita coisa, queimou as casas, fez um vandalismo em toda a comunidade, prendeu muita gente e levou para o Dops [Departamento de Ordem Política e Social] em Fortaleza e outras tantas pessoas fugiram. Em 1937, após o confronto que houve envolvendo a polícia e alguns beatos remanescentes do Caldeirão, morreram dos dois lados. E, após isso, veio de Fortaleza um regimento inteiro e aí se conta que houve bombardeio aéreo, bombas foram atiradas sobre moradores no alto da Chapada do Araripe. No meu entender, essa chacina aconteceu, mas não localizada no sítio [Caldeirão]. Mas, sim, que a polícia matou muito trabalhador rural, que se vestia com roupas escuras (como os penitentes se vestem: marro, azul-marinho ou preta), e a polícia matou indiscriminadamente", afirma o professor Sávio, que é referência no assunto.
O beato José Lourenço entrou na Justiça e conseguiu o direito de voltar para o Caldeirão em 1938, mas acabou sendo despejado por religiosos herdeiros do Padre Cícero. Ainda há muito o que ser contado e esclarecido, mas é consenso que o espaço precisa ser preservado e ainda conhecido pelos cearenses.
Porém, é visível a falta de zelo. O mato está alto. A estrada que leva ao local é consumida pelos buracos e pela vegetação. Virou mais um exemplo de patrimônio amado, porém abandonado. Nesta coluna, já abordamos o Museu de Artes Vicente Leite, também no Crato. Todo mundo ama o Vicente Leite, mas nada é feito efetivamente. Fechado há anos, segue sem reforma, obras encaixotadas e algumas até de paradeiro incerto.
Falta amor verdadeiro à cultura e à memória?
Agora surge uma nova vítima desse nosso amor de mentirinha pela cultura e pela memória: o Caldeirão. Todo mundo concorda com a importância, todo mundo acha incrível, mas melhor deixar o Caldeirão lá no canto dele, né? Sem energia e com o mato tomando de conta. O que tem demais?
Sobre o mato, uma nota da prefeitura informou que técnicos da secretaria de Serviços Públicos vão ter o Caldeirão incluído na agenda de capinação do município. Também em nota, a prefeitura do Crato informou que a energia teve o fornecimento suspenso por causa de um débito de 2010 que está sendo negociado.
Há um projeto para que o Caldeirão seja transformado em unidade de conservação. Projeto esse que estaria sendo gestado na secretaria de Meio Ambiente do Ceará em parceria com a Universidade Regional do Cariri e a secretaria de Meio Ambiente do Crato. Talvez os técnicos que elaboram o projeto não tenham visitado o Caldeirão nos últimos meses, diante da situação de abandono do espaço. E, se visitaram, não denunciaram a ninguém o que viram.