Eu tenho a estranha mania de parar de ouvir os músicos que amo ao vê-los partir. Passei um bom tempo sem ouvir Belchior, estou voltando aos poucos à Elza e à Gal, ao contrário dos que os ouvem incessantemente na partida, essa necrofilia da arte me angustia dolorosamente. Mas já tinha decidido não deixar isso acontecer quando recebi em sala a notícia que a Rita partiu.
Clarice Lispector diz que as palavras ou você as fala, as escreve, ou elas te sufocam, talvez seja isso com minhas ideias e músicas só ouvir na dor da partida me sufoca, por isso decidi escrever sobre a Rita.
A ida da padroeira da liberdade me fez sentir saudade não apenas de suas músicas, mas, de espaços que marcaram a cidade e que ela me fez reviver. Isso acabou me colocando uma questão inconveniente. Onde se conecta hoje a música, a juventude e a cidade?
Rita foi uma para cada geração. Pra mim ela foi muitas. Era gente boa, um bom exemplo da intensidade e complexidade da vida, da porralouquice capaz de ser a mais completa tradução de uma contradição urbana como São Paulo, ou como o próprio Raul, em sonho lhe falou, uma ex-mutante sempre em metamorfose ambulante.
O rock BR não morreu com a Rita, mas acho que o rock encaretou. Rita não, continuou provocativa, mesmo ao sair dos holofotes e ir ser louca no Twitter, mesmo entre uma semeadura ou colheita qualquer, Rita sempre estava por ali e por aqui. Rita era uma constância na minha vida.
Ela não veio muito por aqui, Fortaleza não foi um de seus espaços frequentes, mas, assim como ela, a mutante Fortaleza se fez muitas entre cada passagem da ruiva Tutti-fruti. O Diário do Nordeste fez uma memória dos 10 shows que Rita fez em Fortaleza, a matéria fala que Rita “despertou a memória afetiva de muitos cearenses”. Foi exatamente isso.
Ao ler, vivi uma nostalgia gostosa, uma memória confusa que misturou sons, cheiros, gostos, cores, lugares. Uma sinestesia alencarina sob um som tropicalista.
Rita no Paulo Sarasate (1983)
Eu não tinha ainda sequer a ideia do que era gente, mas pensar nesse show me fez reviver o rock do Ginásio Paulo Sarasate, vivi o estertor desse momento, quase um revival na verdade, assisti dois shows que ainda me emocionam. O disco voador da Ildefonso Albano reverbera uma guitarra como poucos, o Rock BR dos anos 1980 fez casa naquela quadra.
A nave espacial que eu via quando voltava das aulas pela Heráclito Graça respirava, suava, chorava e gritava ao entoar canções antológicas de monstros do Rock como o sideral Raul e nossa Rita Lee e Roberto de Carvalho.
Abriu as portas cearenses à uma geração que chegava fazendo barulho, uma geração de desbunde. Rita já era rainha, a “titia” da geração 80. Foi essa geração que me formou musicalmente.
Rita, censurada pela ditadura, deixava de quatro, no ato, sem duplo sentido, a sociedade careta que vivia naquele lugar desde o grito rockeiro de liberdade às primeiras votações da democracia renascente. Rita Lee era pra mim uma influência, mas, só se tornaria uma inspiração direta alguns anos depois.
Rita na Praia do Futuro (1998)
Eu descobri a Rita no seu acústico MTV, daí pros Mutantes foi um pulo, ela não parava de rodar no meu micro system portátil, me zanguei, briguei e bati porta como bom adolescente por não ir poder ir ao show dela com os Titãs na PF.
Minha juventude foi toda à beira da Praia do Futuro, de dia e de noite. O show era na Barraca Biruta, ícone maior desse momento de Fortaleza.
A Biruta dominava, mas, outras barracas como a Subindo ao Céu e depois a Opção Futuro fizeram a praia viver uma intensidade musical que se divida, pra mim, entre a poética do momento e o começo das minhas inquietações com os jovens que ao invés de curtirem a brisa usavam aquele movimento para conquistar o vil metal.
Entre as contradições da beira do mar, Rita cantava o que eu era, não queria luxo, nem lixo, mas me via imortal e com saúde pra gozar no final.
Rita na PI (2001) e no Dragão (2004)
Só fui entender muitas das desigualdades que via nos caminhos e nas salas da UECE, em uma das músicas que eu mais ouvia nessa fase. Rita cantava que quanto mais proibido mais fazia sentido a contravenção.
Eu tinha 17 e talento para boemia. Também corria sangria nas minhas veias, e ouvir falar sobre legalizações e proibições, gravidez e aborto, Maquiavel e casamento gay em uma única canção quando tudo era ainda mais tabu.
Rita me provocava como provocava o Brasil. A padroeira gostava de apertar onde doía, era uma subversão indireta que sempre me atraiu. Foi nessa fase que finalmente assisti Rita ao vivo, já universitário, cantei com ela em dois momentos.
Era um tempo de muitos shows gratuitos na cidade, gritávamos contra os Panis et Circenses que Rita cantava desde os anos 60 íamos mesmo assim ao Aterro da Praia de Iracema, à Praça Verde ou ao lado do planetário do Dragão e ao Parque do Cocó ver grandes nomes. Não era contradição, era como Amor e Sexo, questões necessárias em diferentes sintonias.
Na hora da música a política e a luta viravam canção, aos gritos de “Tudo vira bosta”. Rita escatológica e logicamente provocava, fazendo pensar no fim, provocar até o final, até decidir parar, até decidir simplesmente envelhecer, perder o ruivo, virar a vó aposentada do rock. Afinal, até o amor, até o sexo, até a Rita, a própria cidade, no final, tudo vira bosta.
Rita em todo lugar
O passado não era melhor, não era mais doce e mais poético, só não é mais. Meu problema não é que esse passado volte, nunca volta, Rita mudava, eu mudava ouvindo Rita, a cidade mudou entre cada visita de Rita Lee.
Minhas lembranças com ela e com a cidade que eu virava de ponta cabeça me fez pensar em um caso mais sério, uma questão analógica da experiência musical.
A grande diferença entre assistir um show incrível em um telão digital no conforto do sofá e ir para um lugar apertado, uma mistura de cheiros e temperos, riscos e bordoadas para ver artistas distantes por vezes desafinarem e reclamarem do retorno, mas, ainda assim sair em êxtase, vendo coisas que nunca serão gravadas e gritar pedindo mais um.
A arte musical é uma experimentação multissensorial do real, é tátil, é física ela se dá em lugar e espaço, ela é histórica, é paleolítica, é ancestral, mais principalmente ela é coletiva.
Rita hoje toca nos bluetooths, em playlists de homenagem, personalizadas e individualizadas nos streamings, e isso é bom. Não temo nem demonizo nenhuma inovação. Rita também não. Ela que não era mulher de backups nunca se negou a provar nada.
Mas me fiz uma pergunta que não é retórica, qual Fortaleza meus filhos vão lembrar quando seus ídolos partirem? Não será a minha, lógico, mas, qual será?
Rita continuará aí para eles ouvirem, mas, quais espaços vão permitir que eles se impregnem de sentimento e se empenhem em sonhos e lembranças?
Espero que estejam aí, pois, mesmo que a ovelha negra da família não vá mais voltar, Fortaleza ainda tem muita música pra viver. Rita foi uma das linhas que costurou a minha cidade.
Obrigado senhora Lee! Estou lhe escutando enquanto escrevo estas linhas, por fim a senhora acabou exorcizando com sua batmacumba o meu sufocamento musical. Não é que no final, até a erva venenosa, a Pagu, a padroeira, a tutti-fruti mutante, até ela, um dia depois, simplesmente vira... memória.