Você saberia dizer quais frutas são verdadeiramente brasileiras ou não? Bananas, cocos, mangas, abacaxis? Das muitas frutas que simbolizam o Brasil no mundo, e mesmo entre os brasileiros, poucas são genuína e originalmente destas terras. Bananas, cocos, laranjas, maçãs são alimentos asiáticos trazidos à América na colonização, alguns se naturalizaram de tal forma que, entre as vinte frutas mais consumidas no Brasil, apenas 3 são nativas: o abacaxi, o maracujá e a goiaba.
Descrevo esta relação para estabelecer como relegamos o potencial de nossos bens patrimoniais alimentares, entre eles um dos símbolos maiores de nossa nordestinidade: o caju. O fruto do cajueiro é a castanha, mas, junto a ela a parte comestível que é confundida com fruta, o pedúnculo floral, pseudofruto carnoso, suculento e saboroso merece ser destacado como elemento cultural de nossa gente.
A escola de samba Mocidade Independente de Padre Miguel homenageou o caju no carnaval do Rio de Janeiro 2024, com o enredo "Pede caju que dou... Pé de caju que dá", o samba que fala da sensualidade e do sabor fez história, furou a bolha carnavalesca, ganhou o público do Spotify e se destacou fora do circuito da Marquês de Sapucaí.
Como diz a letra “O puro suco do fruto do meu amor, sensual e febril é a cara do Brasil”. Fruto versátil, tem uma história fascinante que se entrelaça com a cultura e a tradição do Nordeste e do Ceará. A presença é uma marcante na culinária, na economia e na identidade do povo cearense.
Origens e Expansão
Os povos originários de nossas terras já faziam uso dessa fruta singular. O caju, ou açaí-iu, aka’iu, (noz que produz) fazia tanto sucesso entre os indígenas que se registram guerras pelas áreas produtivas. As guerras de colheita - as “Guerras dos Cajus” – disputavam a matéria prima entre, tupinambás e tupiniquins, de uma deliciosa safra que gerava de alimento ao vinho de caju que conquistou os colonizadores.
Os textos dos primeiros cronistas europeus contam sobre o impacto da frutificação dos cajueiros no cotidiano dos povos indígenas e nos primeiros contatos com os povos que chegavam do mar. Os europeus ficaram intrigados com a peculiaridade do fruto, que combinava a suculência do pseudofruto com o intrigante sabor agridoce da castanha.
O sabor exótico chamou a atenção dos estrangeiros. O português Pedro de Magalhães Gandavo, no “Tratado da Província do Brasil” já falava da” castanha mais saborosa que a amêndoa europeia”. André Thevet, em 1558, descreve os frutos, as árvores e os usos dos produtos dessa nova especiaria ocidental relatando as formas e marcas dessa “descoberta”.
Maurício de Nassau, na ocupação holandesa do Nordeste brasileiro, ficou deslumbrado com o vinho do caju e, vendo potencial em seu comercio, protegeu os cajueiros por decreto multando quem derrubasse um pé de cajueiro, fez chegar às mesas reais europeia diversas remessas “dos já famosos doces de caju pernambucanos". Gilberto Freyre descreve o conjunto de saberes indígenas sobre o caju e o cajueiro como algo tão vasto e diverso que relata os conhecimentos ensinados aos europeus como “complexo do caju”: as aplicações medicinais, rituais e culinárias do pé ao fruto dessa árvore tão especial.
A expulsão holandesa pôs fim aos planos nassalinos de comercialização industrial do caju e seus produtos a partir do nordeste, mas, ainda assim o vegetal ganhou o mundo globalizado das grandes navegações. Os portugueses o levaram para as Índias orientais. Na África e Ásia, o caju se adaptou e, ainda no século 16, se expandiu e o Brasil foi superado na produção de seu próprio artigo original.
Atualmente, os principais países produtores e exportadores de castanhas de caju no mundo foram a Índia, o Vietnã, Costa do Marfim, Gana e Tanzânia. O comércio mundial de amêndoa de caju se estabelece pelos EUA, no século 19, mas quando a empresa americana General Food Corporation passa a negociar as castanhas da Índia. O Brasil mais uma vez perdeu a safra, forneceu essa valiosa comodity para o mundo, mas, não lucra nem legitima seu gigantesco poder comercial e cultural.
“A cajuína cristalina em Teresina...”, no Ceará e no mundo: Sabores e saberes
No século 20, o caju se popularizou com a produção da cajuína. Reconhecida em praticamente todos os estados do Nordeste brasileiro, virou patrimônio cultural do Piauí em 2014. O Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) sacramentou o registro da Produção Tradicional e Práticas Socioculturais Associadas como Patrimônio Cultural Brasileiro. Sua técnica artesanal é uma marca dos festejos juninos e apresentações regionais.
Se a origem conecta-se com ao indígena vinho de caju – que perdemos a receita e o sabor - a atual cajuína é atribuída ao nosso recorrente Rodolfo Teófilo, para ele a "invenção" da cajuína, bebida não-alcoólica seria a forma de vencer o grande consumo de bebidas alcoólicas e fortificar o povo cearense. Hoje a bebida tem a cara da região.
Aliás o caju, o cajueiro e tudo que deles deriva, se revestiu do espectro da tradição: os povos indígenas no Ceará se reconectaram à árvore de forma espiritual e memorial. Entre os Jenipapo-Kanindé, por exemplo, há desde 2017 a festa do Mocororó, o festejo do caju, da conquista da terra e do resgate da identidade ancestral. Neste evento é produzido o Mocororó, bebida alcoólica de caju, sagrada para muitos povos originários do estado. Provei Mocororó pela primeira vez entre os Tremebé de Almofala e a potente bebida me marcou positiva e alegremente.
Para os Jenipapo-Kanindé, a festa do caju – em torno do cajueiro sagrado, “lugar de memória e encantado para a comunidade” que guarda as encantarias da Cacica Pequena e as memórias das lutas recentes da comunidade – é uma oportunidade de ressaltar a conexão das gentes com a terra e seus presentes.
As possibilidades de estudar, conhecer e degustar o caju são incontáveis. Múltiplas possiblidades de usos e manejos, fonte de renda de muitas famílias cearenses e também uma atividade cultural que passa na forma de tradição e ensinamento familiar. Das castanhas torradas em roda entre histórias e fofocas à produção de doces, compotas, geleias na cozinha, os empreendimentos familiares à base de caju não só contribuem para a economia local, mas também preservam saberes culinários e fortalecem os laços comunitários.
Vinicius de Moraes descreveu em seu “Soneto ao caju” que esse produto 100% nacional, único fruto – não fruta – brasileiro, é algo a se amar, tátil, erótico, mordaz. O caju se assemelha ao Nordeste, a fruta é dura e seca, mas seu acompanhamento é macio, doce e suculento, enche olhos e bocas, alimenta, sustenta e dá prazer. É uma combinação material e narrativa de resiliência, inovação e tradição.
O caju é mais do que uma simples fruta - é um símbolo de identidade, orgulho e conexão com a terra que moldou uma região e seu povo ao longo dos séculos.
Assim como o Nordeste podemos ser tradição e poesia também pensar na riqueza e na economia. Hoje fruta e pseudofruto do caju são importantes itens no comércio mundial.
O valor total de vendas, após agregação de valor, podem superar US$ 2 bilhões. O Brasil precisa, como cantou a mocidade, “por os dentes nesse lote” ou nos manteremos atrasados em nosso próprio mercado, perdendo toda a potência que essa iguaria pode nos proporcionar.
O valor do caju para a cultura é incalculável para quem cresceu subindo cajueiro para tirar caju no pé, comer caju com medo de dar noda na roupa, apanhar da mãe quando chegava em casa ou quem queimou a mão em castanha torrada na brasa. Mas, mesmo para que não pode viver essas experiências sensoriais únicas de um sertão de afetos e materialidades, ainda resta o sabor travoso e inquietante do caju a ser desbravado e usufruído. Viva o Caju, a cajuína, o cajueiro, o mocororó e o que mais a Anacardium occidentale - fruta em forma de coração – puder nos propiciar!